Os principais locais que disponibilizam atendimento e tratamento para crianças com microcefalia em João Pessoa suspenderam as atividades desde o anúncio de isolamento social pelo Governo do Estado. O principal motivo é que a maioria das crianças acabam se tornando grupo de risco porque possuem problemas respiratórios. Camila Raquel é mãe de Maria Lys, com quatro anos, e teme que a evolução da filha seja retardada. “Estou com um medo tão grande que isso não sai da minha cabeça”, revela.
A rotina de Lys sempre foi muito corrida em relação aos tratamentos. O G1 acompanha a evolução dela desde os 8 meses de idade. Atualmente ela estava fazendo equoterapia na Associação Paraibana de Equoterapia (Aspeq), fisioterapia no Centro de Tratamento Júlia Mikaelle, hidroterapia no Centro Universitário de João Pessoa (Unipê) e fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia na Fundação Centro Integrado de Apoio à Pessoa com Deficiência (Funad). Todos esses serviços, segundo Camila, foram suspensos.
Segundo a cordenadora do Programa de Atenção Integrada à Criança com Microcefalia por zika vírus do Unipê, Sheva Castro, as crianças não fazem parte do grupo de risco, mas elas têm outras comorbidades associadas. "Muitas crianças se internam por pneumonia de repetição, ou seja, elas têm uma facilidade de broncoaspirar. De repente, é possível, diante do vírus, que o quadro clínico dessas crianças com microcefalia se agrave” explica.
O problema não era apenas as crianças estarem, de certa forma, enquadradas em um quadro de risco. No caso de Camila, e da maioria das mães, é preciso pegar ônibus para ir até os atendimentos. E, em João Pessoa, a circulação dos transportes coletivos está suspensa desde o dia 21 de março.
A maior preocupação de Camila é que todas as consequências causadas pela pandemia do coronavírus demorem a passar, como a suspensão dos ônibus, dos serviços e dos tratamentos da filha. “Minha preocupação é que atrase o desenvolvimento dela. Por mais que eu faça alguns exercícios em casa, não é a mesma coisa que os profissionais”, relata.
Lys sempre foi muito rígida, o que também acaba sendo uma consequência de alguns casos de microcefalia. Então, o que Camila ainda consegue fazer é alongamento com a filha. Devido a rigidez, tem um pouco de medo de errar os movimentos, esticar muito ou fazer algo que não deveria fazer. Apesar dos quatro anos vivendo apenas para a filha, a insegurança ainda é diário. A microcefalia ainda é algo novo até na vida de Camila, que conhece uma dificuldade por dia. A pequena também usa um aparelho chamado parapodium que a permite ficar em pé.
Maria Lys no equipamento que a permite ficar em pé — Foto: Camila Raquel/Arquivo Pessoal
Felizmente ainda não percebeu nenhum retardamento no que já havia conquistado com Lys, mas como a criança está 24 horas em casa, acaba se estressando mais do que o normal. “Nem na calçada a gente sai, com medo”, desabafa.
De acordo com Fábia Rocha, coordenadora do serviço de reabilitação física do local, não é possível dar uma orientação para as mães fazerem exercícios em casa, porque cada paciente tem a sua particularidade. “Que elas continuem fazendo em casa as orientações que são recebidas no cotidiano, diariamente, nas sessões que recebem, porque cada criança tem um protocolo específico, devido a gravidade, que pode variar”, explica Fábia.
Fábia explica que tem criança que ainda não tem condições de ficar sentado, então são exercícios específicos. Por isso, devem ser mantidas as orientações que são dadas durante o tratamento. “Em breve eles retornarão e o tratamento será retomado. Não vai prejudicar”, esclarece Fábia, desde que se cumpra algumas orientações que são dadas pelas médicas para as mães, sobre atividades que podem ser feitas em casa.
O medo de Camila parece fazer ela retornar ao que viveu em 2015, quando descobriu que Lys nasceria com microcefalia. “Isso tudo está mexendo muito com meu psicológico. Parece o que eu vivi em 2015, quando começou a passar na TV a infecção pelo zika, atingindo mães grávida e causando a microcefalia”, conta.
“Naquela época, nada tirava da minha cabeça que eu tinha sido infectada, mesmo os médicos dizendo que não. Eu dormia e acordava pensando nisso, até descobrir que realmente tinha razão”, lamenta. O medo é que o desconhecido venha pela segunda vez. “Está sendo perturbador”.
Mesmo assim, Camila toma todos os cuidados que pode dentro de casa, onde tamém mora sua outra fiha e a mãe. Maria Lys só vai até a sala. Se alguém sai, quando chega toma banho e troca de roupa. Além disso, estão sempre lavando as mãos com sabão, já que o álcool em gel não está tão acessível.
Nícolas tem quatro anos e também está sem receber os tratamentos que precisa, em João Pessoa — Foto: Raquel Alves/Arquivo Pessoal
'Meu medo maior é ele voltar tudo do zero'
Raquel Alves nutre da mesma preocupação. O filho Nícolas também tem quatro anos, mas a sua maior dificuldade é na mastigação. Com a ausência da fonoaudióloga, ela tenha mais dificuldades, já que se engasga com a maioria das coisas que come. Além disso, Nícolas é cardiopata. “A vida dele é uma caixinha de surpresas”, relata. Ele fazia todos os tratamentos que Maria Lys e também teve que suspender todos.
Tenta seguir algumas orientações e estimular a criança em casa, mas sente e sabe que não é a mesma coisa que um profissional da área. Além disso, não tem os equipamentos necessários. Raquel vive um problema duplo: vive sozinha com o filho. Divide, 24 horas por dias, o trabalho doméstico com o de mãe. Se antes saía de segunda a sexta-feira para os tratamentos, hoje está em isolamento social, sem sair de casa para nada e tomando cuidados de higiene necessários. “Tenho muito medo desse vírus”, revela.
O medo do tratamento estagnar e a evolução também ser freada parece unanimidade entre elas. O maior medo de Raquel é que Nícolas precise voltar o tratamento do zero. “Fico com o coração partido. Isso atrasa muito o desenvolvimento dele, porque ele precisa todos os dias de estímulo. Com essa pandemia hoje estou presa sem poder sair com ele”, destaca.
O que dizem as instituições
- Aspeq: o G1 tentou entrar em contato com o telefone fixo da Aspeq, mas as ligações não foram atendidas.
- Centro de Tratamento Júlia Mikaelle: de acordo com a coordenadora Ranielle de Sousa, os serviços estão parados desde o da 17 de março, porque muitas crianças apresentam um histórico de problema respiratório. O retorno só deve acontecer quando houver segurança em relação à saúde das crianças. Atualmente o Centro atende 56 crianças com problemas neurológicos, sendo a maioria com microcefalia. Para amenizar a situação, estão tentando continuar com o apoio por meio da entrega de cesta básica, kits de higiene e leites. Quem se interessar em fazer doações, podem entrar em contato pelos telefones (83) 99823-2224 ou (83) 99823-2220.
- Funad: a Funad, atualmente, atende cerca de 35 crianças com microcefalia e está com os atendimentos suspensos desde o dia 19 de março. “São crianças muito vulneráveis, por isso tivemos muito cuidado com eles para não colocá-los em risco. Paramos por segurança, não por imprudência ou por querer”, declarou Fábia Rocha, coordenadora do serviço de reabilitação física do local.
- Unipê: Os atendimentos presenciais às crianças e famílias do Programa de Atenção Integrada à Criança com Microcefalia por zika vírus estão suspensos desde o dia 17 de março e não há, por enquanto, uma previsão de retorno em face a pandemia do COVID-19. O Programa, coordenado pela docente Sheva Castro, pretende lançar, em breve, orientações de forma remota às mães de crianças com microcefalia por zika vírus atendidas pelo Unipê. As informações terão um enfoque aos cuidados respiratórios e aos cuidados necessários de prevenção durante o período de quarentena. Vídeos com as orientações gerais serão gravados e enviados às mães por meio de aplicativo de celular. No semestre passado, o Programa atendeu 18 crianças. A professora Sheva Castro alerta, ainda, que para a estimulação do desenvolvimento motor das crianças, as mães já contam com a cartilha, oferecida pela Instituição, para a facilitação domiciliar.