Escritora, ativista, religiosa e educadora, Maria Valéria Rezende participou ativamente do desenvolvimento educacional no campo, no Agreste paraibano, durante a época repressiva e violenta da ditadura militar. Nos 60 anos do golpe, Maria Valéria relembra a resistência por meio da educação.
Maria Valéria, que sempre se dedicou à educação, entrou em 1965 para a Congregação de Nossa Senhora,- Cônegas de Santo Agostinho, onde realizava missões ajudando as pessoas no meio popular. Em 1976, veio para a Paraíba, no meio rural, onde permaneceu até o ano de 1986. Foi durante seu tempo na cidade de Guarabira, no Agreste da Paraíba, que vivenciou um dos períodos mais tensos de sua vida.
Ela conta que tudo começou através de uma pesquisa feita a partir de uma ação do então bispo auxiliar de Guarabira, Dom Marcelo Carvalheira. O propósito era entender quais as necessidades da população que morava na região. Apesar das inúmeras possibilidades de respostas quanto ao que faltava para aqueles moradores – dinheiro, terras, oportunidades de trabalho, – o que mais foi dito era que faltava escola para as crianças.
Dom Marcelo Carvalheira, inclusive, chegou a ser preso pela ditadura no final de 1960, segundo o relatório da Comissão da Verdade. Ele foi acusado de apoiar pessoas que se colocavam contra o regime ditatorial e eram perseguidos, mas isso não o intimidou.
Dom Marcelo Pinto Carvalheira — Foto: Arquivo/Arquidiocese de Olinda e Recife
Valéria ressalta que trabalhar com educação era uma situação complicada por causa da ausência de escolas no meio rural e pela inexistência de classes que se adequassem ao nível de conhecimento dos meninos e das meninas do campo nas escolas das cidades vizinhas. Mas não era apenas isso.
‘Nós tínhamos uma situação de tensão permanente. Aqui no Nordeste, no campo, no interior, latifúndio e o poder político estavam muitos associados”, pondera.
Maria Valéria Rezende relata que as crianças, ao chegarem aos oito e nove anos de idade, já precisavam ir para o canavial para ajudar o pai a cortar cana e, com o início das safras durante o mês de agosto até setembro e outubro, acabavam tendo os estudos, – cujo acesso já era extremamente escasso, – ainda mais prejudicados.
“Nós até chegamos a discutir com as prefeituras se não era possível mudar e pôr as férias nesse período e dar continuidade ao ano letivo quando seriam as férias, que era o momento que as crianças não tinham que ir cortar cana”, narra Maria Valéria. “Mas é claro, disseram que não, que não haveria possibilidade. Para quem estava no poder, não interessava educar os trabalhadores, pelo contrário: eles queriam que os trabalhadores continuassem oprimidos, achando que a vida era assim mesmo e que não tinha jeito, porque isso significava se submeter àquela forma de exploração absolutamente cruel”.
Esse acontecimento foi o estopim para que Maria Valéria se reunisse com seus colegas e formasse uma aliança com a comunidade dos lugares onde não existia nenhuma escola, onde através de um mutirão, eles conseguiram construir salas de taipa e palha que começaram a ser usadas como escolas, mas que não podiam ser chamadas como tal para que não fossem alvos da repressão e intervenção política e patronal.
“A gente não chamava de escola justamente para não haver perigo de vir o poder público municipal para querer dar ordens ali. Não era escola, era canteiro”.
Maria Valéria reuniu dentro dos sítios e povoados os jovens que já estavam cursando o ensino médio e tinham alguma escolarização para que pudessem atuar como monitores dentro das salas de aula construídas por eles. Com a ajuda de seus colegas, Maria Valéria treinou os estudantes para se habilitarem para a posição de monitores, com uma formação pedagógica baseada na metodologia do educador Paulo Freire e trambém montessoriana, ambas com o propósito de tornar o aluno um aprendiz ativo e autônomo para pensar por si mesmo.
Maria Valéria Rezende fala sobre educação na ditadura — Foto: Reprodução/TV Cabo Branco
Universidade popular no campo
A escritora relata que os jovens que atuaram como monitores naquelas escolas também foram formados por ela e por seu grupo através da criação da UNIPOG (Universidade Popular de Guarabira), cujas aulas eram ministradas por eles todos os sábados de manhã, em uma turma com entre dez a quinze alunos.
“A gente começou a estimulá-los a entrar na universidade. Eu me lembro muito bem que eu recomendei: ‘vocês vão se inscrever, vão fazer o exame do vestibular e não vão dizer nada em casa, porque se por acaso vocês não passarem, vocês vão decepcionar suas famílias”, disse Valéria.
“O resultado é que todos eles acabaram entrando na pedagogia e se tornaram professores universitários do departamento de pedagogia”, relembra Maria Valéria Rezende com alegria, sem esconder o orgulho que sente por seus alunos terem alcançado o sucesso ainda que dentro de um cenário tão desvantajoso.
Maria conta que ainda tem contato com todos os adolescentes de Guarabira que costumavam ser seus alunos durante aquela época. “É uma ligação quase de mãe pra filho”, diz, emocionada.
‘Valeu a pena’
“A minha vida eu não queria outra não. Eu não queria nem ter nascido em outro canto, nem ter vivido em outro lugar, nem ter nascido nem antes nem depois do que eu nasci. Eu olho para trás e digo: valeu a pena. Eu gostei da minha vida. Teve sofrimento, teve dificuldades, teve luta, teve tudo. Teve muita dor, também. Mas eu acho que valeu a pena”, afirma, sem hesitação.
“Eu acho que valeu a pena justamente quando eu vejo as pessoas que eu ajudei a caminhar, a descobrir, a pensar e que me ajudaram também, porque é uma troca, né? E digo: ah, valeu a pena. Valeu muito a pena”, conclui, com um sorriso no rosto.
G1