Maria da Silva (*nome fictício) tinha apenas sete anos quando a vida começou a se despedaçar aos poucos. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma criança. Para o vizinho, uma mulher. Ou um objeto. Maria foi vítima de abuso sexual infantil por cerca de dois anos. A dor física pode ter durado alguns dias, mas os danos causados vivem com ela até hoje. Apenas 13 anos depois entendeu que sofreu violência sexual na infância. “Acredite… Somente aos 20 anos eu fui compreender que era abusada na infância”, desabafa Maria, hoje com 40 anos. Apesar de difícil, entender a própria história foi determinante para ler a sequência da vida.
O caso de Maria aconteceu há algumas décadas no Sertão paraibano, mas ainda é uma realidade estadual. No ano de 2022, 144 crianças de 0 a 11 anos foram vítimas de estupro de vulnerável. Em 2021, o número foi ainda maior: 169 casos. As vítimas de abuso sexual infantil na Paraíba têm, principalmente, entre 6 e 11 anos, mas também há registros de crianças com 2, 3, 4 e 5 anos.
Os dados foram solicitados pelo Núcleo de Dados da Rede Paraíba à Secretaria de Estado de Segurança e Defesa Social (Seds) e mostram um número alarmante: cerca de 12 crianças foram vítimas de estupro de vulnerável infantil por mês, em 2022, na Paraíba. O maior número de vítimas é entre crianças de 4 e 6 anos.
Sofrendo em silêncio
Maria brincava junto com uma amiga da mesma idade quando os abusos começaram a acontecer. Uma ia para a casa da outra. No entanto, na casa da amiga, o irmão (que tinha entre 19 e 20 nos) “ficava dizendo que ia brincar de casinha com a gente”. Com isso, pedia para que a irmã fosse buscar os brinquedos dentro de casa. Quando ela saía, o rapaz afastava a calcinha de Maria e tocava nas partes íntimas dela.
“Eu ficava sem entender, morava no interior e educação sexual sempre foi tabu há cerca de 30 anos. Ele sempre fazia isso e dizia que se eu contasse a alguém, ia matar minha mãe. Eu ficava com medo”, explica Maria.
Com receio de voltar para casa da amiga, Maria sempre repetia que não queria ir. A mãe, sem entender, tentava explicar que não tinha problema, que ela poderia ir. Os abusos, então, continuaram a acontecer. E se postergou por dois anos.
No último abuso, o homem tentou levar Maria para cama e colocou o órgão genital para fora da roupa. Em seguida, usou o dedo para estuprar a criança. Sentindo muita dor e sangrando, Maria saiu correndo. Mesmo assim, temendo pela vida da mãe, não contou nada para a família. Mas deixou de frequentar a casa da amiga, que se mudou da casa duas semanas depois.
Para Maria, seria o fim de um sofrimento silencioso. Mas não imaginava que as consequências a acompanhariam pela vida adulta.
Delegacia da Infância e Juventude, em João Pessoa — Foto: TV Cabo Branco/Reprodução
Danos do abuso sexual
Ainda criança, Maria entendia apenas que o que aconteceu doía bastante. Mas na adolescência, os danos já começaram a aparecer. Casou-se cedo, ainda debutante, e foi proibida pelo marido de continuar os estudos. Continuou porque, afinal, era essa a imagem que tinha dos homens. Para Maria, não parecia errado.
“Ele me obrigava a fazer sexo com ele. E era uma tortura, porque me remetia a minha infancia. Eu sofria mais com o que lembrava do que com o sexo forçado. Ele era bem autoritário, e eu não conseguia sair do ciclo de violência”, conta.
Ela até percebeu alguns sinais no início do relacionamento, mas imersa em uma sociedade patriarcal e vítima dos abusos na infância, entendia ser natural o autoritarismo.
Mas anos depois conseguiu se separar porque, além das proibições, era agredida fisicamente e psicologicamente pelo marido.
Foi aos 20 anos – depois de achar que violência era rotina – que compreendeu que era abusada na infância. E que nada disso era normal. Não é muito simples explicar como esse entendimento acontece. Muitas vezes, basta um pensamento para tudo fazer sentido. Mas o conhecimento é fundamental para o primeiro passo.
O momento em que tudo fez sentido para Maria coincidiu com a retomada dos estudos e a entrada na faculdade. Começou a estudar violência sexual e a trabalhar com o assunto. Nada disso tornou a situação mais fácil, mas ajudou a que entendesse que essa não era a ordem natural das coisas.
“Pra mim ainda é um grande trauma. Três décadas depois, faço terapia e tomo medicação controlada devido à síndrome do pânico que adquiri e ao Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), tudo devido ao que passei. Só comecei a sentir essas crises depois de adulta, quando entendi que eu fui abusada praticamente dentro da minha casa e ninguém pôde me ajudar. E isso ainda é muito forte pra mim”, desabafa Maria.
A psicóloga Glória Maciel explica que as consequências são várias e podem se apresentar de maneiras diversas entre as vítimas. No entanto, ela destaca alguns impactos principais. “Então entre os impactos tem a dificuldade de se relacionar e confiar em outras pessoas, agressividade, timidez, isolamento, distúrbios de sono, alterações no apetite, pensamentos suicidas, ansiedade, depressão, comportamento obstrutivo, hipersexualização”, detalha.
Novas relações
A compreensão de um abuso sexual infantil é essencial para lidar com os danos que a violência causa na vida adulta. Mas, ao mesmo tempo, pode criar uma barreira na vida da mulher.
No caso de Maria, após o casamento conturbado e violento, houve, primeiro, uma confusão em relação à orientação sexual. “Achava que homem só abusava, só machucava. Aos 30 anos, comecei a me relacionar com mulheres, mais por confusão devido aos traumas do que por opção. Era legal, mas não era minha preferência”, explica.
Algum tempo depois, Maria voltou a se relacionar com homens, não sem dificuldade. “Encontrei uma pessoa que compreendeu tudo que passei, me acolheu. Ele tem paciência, entende meus limites e tem me ajudado bastante nesse processo”, conta Maria.
Esse foi um passo grandioso na vida de Maria, mas ela ainda tem questões tratadas em terapia que não consegue desenvolver. Os danos são implacáveis. É como uma doença sem cura com a qual é preciso conviver. Hoje Maria é jornalista, lida com casos como o dela diariamente, inclusive, noticiando mulheres que não conseguiram sair do ciclo de violência e foram vítimas de feminicídio. Informa, comunica, porque sabe que o conhecimento foi fundamental para romper o passado.
Campanha Agosto Lilás conscientiza sociedade para enfrentamento da violência contra a mulher — Foto: Reprodução / Redes sociais
Acompanhamento psicológico
A psicóloga Glória Maciel explica que é comum que algumas pessoas que passam por situação de abuso sexual se sintam vulnerável e com dificuldade de confiar nas pessoas ou se relacionar, afinal, “ao invés de ela ser cuidada, ela foi violada por pessoas qu deveriam ter esse cuidado com ela. É como se todas as pessoas fossem capazes de cometer algo mal contra ela. Então o acompanhamento psicológico é primordial para poder compreender esse sentimento de insegurança e ter uma forma de comportamento”, explica.
Na fase adulta, quando se identifica que houve uma situação de abuso e se depara com os impactos que isso ocasionou, é importante buscar ajuda profissional, com um espaço seguro para falar e buscar estratégias para lidar com a situação de uma forma que não gere mais prejuízos para a vida da vítima.
Conforme Glória Maciel, quando identificado que a criança passa por qualquer situação desse tipo, é importante realizar a denúncia, mostrar à criança que aquele meio social e que ela está inserida busca e quer a proteção dela.
“É primordial para ela (a criança) lidar com todos os sentimentos e, aos poucos, ir compreendendo o que aconteceu. Uma forma de orientar as crianças é justamente a questão da educação sexual, para cada faixa etária. Já na primeira infância é essencial para que ela compreenda que as pessoas não podem tocar o corpinho dela, que existem toques que não são permitidos e que diante disso elas precisam falar, procurar pessoas em que elas confiem para poder falar sobre aquilo que está incomodando”, explica a psicóloga.
A escola auxilia bastante nessa questão, conforme explica a profissional, tanto para a questão de repassar essas informações para a criança da forma mais adequada, como também para observar e agir como um fator de proteção, percebendo possíveis sinais na criança. “A criança, por mais que ela não compreenda e muitas vezes ela não fale, vai dar alguns sinais no comportamento dela de que algo está acontecendo”.
De acordo com a psicóloga, as pesquisas mostram que, na maioria das vezes, o abuso é cometido por pessoas de confiança, sejam os próprios pais, familiares ou vizinhos. São pessoas em que a criança cria uma figura de proteção.
“Portanto, é um sentimento muito contraditório e a criança ainda não tem conhecimento necessário para poder identificar que aquele tipo de toque não corresponde ao cuidado e sim ao abuso, então fica tudo muito confuso na vida da criança. Ela sente um incômodo, tem uma estranheza ali que ronda aquele tipo de comportamento, até porque muitas vezes ela é ameaçada”, detalha a psicóloga.
Portanto, a criança não se sente segura o suficiente para partilhar o fato com outras pessoas, por conta da ameaça, mas também não compreende a gravidade daquele comportamento. Por isso é tão importante ações de educação sexual, além de ouvir atentamente o que diz a criança e ficar atento aos sinais.
*A reportagem utilizou um nome fictício para preservar a identidade da vítima.