“Acho que a primeira coisa que eu reparei quando conheci o Leandro foram nas mãos dele. Eu era estagiária de um escritório de advocacia lá no começo dos anos 2000, e ele era o mais novo contratado. Chegou na minha mesa perguntando onde era a sala dele. Acho que, pelo menos da minha parte, foi paixão à primeira vista.
Aquele era meu primeiro emprego, eu tinha lá meus 20 e poucos anos, e ele era um pouco mais velho do que eu, uns 28. Não queria me envolver com ninguém no trabalho, mas ele sempre estava lá, vinha conversar na minha mesa, eu saía para tomar café e ele ia junto na mesma hora, ‘por coincidência’. Quando me chamou para sair, eu nem me fiz de difícil. Só falei que topava e perguntei o dia.
Ele me levou para dançar em uma das boates famosinhas da época, em São Paulo. E me beijou. Foi o começo da nossa relação –eu só não imaginava que tudo ficaria tão tenso depois.
Nos relacionamos por quatro anos, e era tudo perfeito. Leandro era gentil, atencioso e sempre romântico. Mas eu sentia que tinha algo errado. Eu sabia que ele tinha tido um relacionamento meio conturbado antes, mas, quando eu tocava no assunto, ele ficava irritado, desconversava. E eu passei a evitar esse tópico.
A gente foi morar junto e, no final de 2004, minha menstruação atrasou. Na hora, senti que estava grávida. É até estranho dizer, mas eu sabia! Sabia que lá estava minha filha. Mesmo assim, corri para a farmácia comprar um teste.
Quando deu positivo, chorei de felicidade e achei que Leandro ficaria feliz também. Quando ele chegou em casa, após um happy hour com os amigos do trabalho, fui toda feliz contar a notícia. Ele estava meio bêbado e não entendeu muito o que eu estava dizendo, mas, depois de alguns segundos, ele veio para cima de mim com tudo.
No primeiro momento, achei que fosse um abraço, mas quando o primeiro soco veio, eu fiquei sem reação. Ninguém espera que a pessoa que você ama te bata, muito menos depois que você fala que está grávida. Ele dava tapas e gritava que era culpa minha, que nada daquilo teria acontecido se eu tivesse tomado cuidado e que era para eu tirar a criança.
Eu me encolhi toda, na intenção de proteger o bebê –que eu mal sabia da existência e já amava. Ficava pedindo para ele parar, até que uma hora ele parou e começou a chorar. Disse que não queria que a criança tivesse a mesma doença que ele.
Foi aí que ele me contou que ele era soropositivo. O que era para ser um momento de alegria, tornou-se um dos piores dias da minha vida. Ele nunca tinha me contado nada sobre isso e, às vezes, tínhamos relação sem camisinha.
O que mais me doeu não foi o fato de ele ter HIV, não é isso, mas ele não me contou e não me deu o direito de escolher se eu queria ou não ficar com ele. Foi uma sensação de traição. Mesmo dolorida e nervosa, eu falei que a gente precisava conversar.
Leandro me explicou que ele e a ex eram viciados em heroína e compartilhavam a mesma seringa com diversas pessoas. Foi assim que ele pegou. Ele pediu diversas vezes perdão, dizia que me amava e que não queria que nada daquilo tivesse acontecido.
Estava atordoada na hora, não sabia o que fazer. Tirei forças sei lá de onde e falei que ia manter a criança, mas antes eu precisava saber se tinha também a doença. No outro dia, ele me levou até o Emílio Ribas, hospital referência em São Paulo, fiz o exame de sangue e deu positivo. Na mesma semana, recebi dois testes positivos, um de gravidez e o outro de HIV.
Estava envergonhada na época, não queria contar para a minha família, os meus amigos, ninguém. Eu fiquei em casa com o Leandro, saí do emprego e escondi que estava grávida e soropositiva. Acho que agora, com outra cabeça, eu teria tomado outra decisão, mas eu me sentia culpada.
Os médicos tinham me receitado tomar AZT, mas eu não tomava. Não entendia nada da doença, queria proteger minha filha, então não tomei. Foi uma péssima escolha, eu sei, mas na hora eu senti que era o certo a fazer.
Quando cheguei ao sexto mês da gestação, meu marido ficou muito doente, muito mesmo. Ao levá-lo para o hospital, descobrimos que ele estava com pneumonia por Pneumocystis carinii, uma infecção oportunista para pacientes soropositivos.
Foi aí que eu liguei para a minha família e contei tudo. Eu precisava do apoio deles, porém estava aterrorizada que eles me olhassem diferente. Para a minha surpresa, todos me acolheram e disseram que já amavam minha filha que nem tinha nascido.
Eu disse que queria voltar para casa, e me lembro do meu pai falando: ‘Onde comem quatro, comem cinco’. Me emociono só de lembrar. Quem teve uma reação contraditória foi a família do Leandro. Eu sabia que eles não eram próximos, mas eu não sabia o quão preconceituosos eles podiam ser. O filho deles no hospital, eu grávida, e os pais deles me culpando, dizendo que eu tinha infectado o filho deles.
A minha sogra inclusive espalhou esse boato para toda a cidade que eles moravam, no interior de São Paulo. Eles me olhavam torto e, quando foram em casa, levaram os próprios pratos e talheres porque não queriam encostar em nada nosso.
Mas essa nem foi a pior coisa que eu ouvi. Um dia, escutei uma médica que atendia meu marido dizer para eu abortar a criança. Eu nunca quis bater tanto em alguém, estava grávida de sete meses. Leandro estava na UTI, e o estado só piorava. Eu não saía do lado dele, eu ainda o amava apesar de tudo e o queria bem. Ele mal conseguia falar, mas quando conseguia, ele me olhava e pedia desculpas.
Ele morreu pouco tempo depois, antes da filha nascer. Uma parte minha morreu naquele dia também, mas eu fui forte por mim, pela Catarina, pela minha família e também pelo Leandro. Eu não queria ter o mesmo fim que ele.
Catarina nasceu um mês depois, de cesárea. Meu pai estava comigo na hora, segurou a minha mão. Ela nasceu saudável, juro que vi até um leve sorrisinho quando a olhei pela primeira vez. E, coisa de mãe: eu a achava o bebê mais bonito da maternidade. Ela nasceu sem o pai, mas não sem amor. Minha família e meus amigos nunca nos deixaram. A família de Leandro não quis saber dela, nunca ofereceu ajuda nem para comprar uma fralda. Mas eles que perderam a chance de conhecer uma garotinha incrível.
Apesar de ela ter nascido saudável, durante todo o primeiro ano eu tinha que levá-la para tirar sangue e fazer testes. E eles não me falavam o resultado, porque não queriam me dar esperanças e, no final, ela ser soropositiva também. Era horrível, as veias delas eram tão fininhas e ela parecia sofrer. Eu ficava com raiva do Leandro por causa disso.
Um ano depois, veio a notícia: Catarina não tinha HIV. Foi uma sensação de alívio, eu sabia que ela ia ser amada de qualquer jeito, mas não queria que ela tivesse que tomar remédios a vida inteira, ou que sofresse preconceito.
Eu demorei para contar a ela sobre tudo. Quando perguntava do pai, dizia que ele morreu de câncer, mas que ele a amava muito. Mesmo com todo o amparo, ser mãe solo não é fácil. Eu desenvolvi depressão e crise de pânico. Tinha medo de conhecer novas pessoas, de alguém fazer mal para mim ou para a minha filha. Foi só depois de muitos anos e muita terapia que eu me senti pronta para seguir em frente.
Em 2010, conheci meu atual marido, o Eduardo, que nunca me olhou diferente e sempre tratou Catarina como sua filha. A vida foi voltando aos eixos aos poucos, sabe? Mas voltou. Quando Catarina foi ficando mais velha, eu decidi que ia contar a verdade para ela. Fiquei com medo de novo, mesmo criando minha filha para não ter nenhum preconceito, não tinha ideia de como ia ser a reação.
Mas, como sempre, minha filha me surpreendeu. Disse que não mudava nada, que sempre iria me amar e que sentia muito por tudo que eu passei. Ela era tão nova e parecia entender tudo do mundo. Ela está com 18 anos e quer ser médica. Disse que quer se especializar em HIV.
Hoje em dia, eu estou bem, com a carga viral indetectável. Mas, a cada seis meses, volto para o Emílio Ribas e faço um checkup geral. A diferença, agora, é que minha filha sempre está ao meu lado.”
Por Paola Churchill, redação Marie Claire