Cada lugar do mundo tem, na sua cultura, uma bebida típica. O americano tem o uísque, o europeu tem o vinho, o russo tem a vodca, o japonês tem o saquê e o brasileiro tem a cachaça. De muitas cores, aromas e sabores, a bebida virou cultura onde o carnaval e o futebol também se tornaram fenômenos. Está nos livros, no cinema, nas datas comemorativas e até em letras de samba. Como diz o mais célebre trecho da canção que embala o carnaval do Brasil até os dias de hoje, “Pode me faltar o amor, disso eu até acho graça, só não quero que me falte a danada da cachaça. Você pensa que cachaça é água? Cachaça não é água não (…)”. A bebida é uma das paixões nacionais e a fama dessa frase representa bem o amor pelo destilado brasileiro. Nesta terça-feira, 13 de setembro, foi comemorado o Dia Nacional da Cachaça, em homenagem a data em que a fabricação do aguardente da cana foi oficialmente liberada no país, na mesma data em 1661.
Estima-se, de acordo com o “Prelúdio da Cachaça” do historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo, que ela foi produzida pela primeira vez por volta dos anos de 1530, em São Vicente, no estado de São Paulo – terra dos primeiros engenhos de açúcar do país – embora os registros oficiais do destilado só remontem ao início do século XVII, quando, no livro de contas de um engenho baiano, o “augoa ardente” foi relatado no cálculo das despesas como algo de consumo para os escravos.
Com a popularidade da bebida, o império decidiu implantar medidas para proibir a produção e o consumo de cachaça, com o intuito de difundir no país a “bagaceira”, uma bebida alcoólica típica de Portugal feita com bagaços de uva. Após uma série de revoltas populares contra essas imposições, em 13 de setembro de 1661 a fabricação da bebida foi oficialmente liberada. A partir desse momento, a cachaça brasileira passa a caminhar junto com os movimentos de independência, ganhando ainda mais expressão econômica e cultural.
É a bebida do povo, áspera, rebelada, insubmissa aos ditames do amável paladar, bebida da Independência, atrevendo-se enfrentar o vinho português soberano […] a patriota, a gloriosa, cachaça dos negros do Zumbi no quilombo dos Palmares […] tropelias da Revolta do Quebra-Quilos, do Clube do Cupim, conspirador abolicionista, gritador republicano, bebida nacional, a brasileira.
– Luís da Câmara Cascudo
É somente com o decreto de nº 4.062 de 2001, do presidente Fernando Henrique Cardoso que a cachaça é oficializada como uma bebida genuinamente brasileira. O decreto também define a expressão “cachaça do Brasil” como indicador geográfico para facilitar a comercialização do produto no mercado externo.
A bebida do povo
A cachaça sempre esteve atrelada a história do Brasil. Nos primórdios, quando a bebida era considerada de “quinta categoria”, foi usada, inclusive, como moeda de troca por escravos. Mas a pinga brasileira não pode ser confundida com o aguardente português, também chamado cachaça e produzido a partir da uva. Ao longo do tempo, os modos de se fazer e consumir a bebida foram se adequando às tecnologias. Até chegar ao consumidor, o aguardente passa por vários processos, que começa na colheita e moagem da cana, passa pela fermentação, destilação e envelhecimento, que é o processo que modifica a cor, o aroma e o sabor da cachaça.
Dia 13 de setembro é comemorado o Dia Nacional da Cachaça. — Foto: Foto: Reprodução/Shutterstock.
Hoje, principalmente no Nordeste, é comum entrar em bares e encontrar garrafas da bebida Matuta, Triunfo, Pitu, 51 e Caranguejo expostas sobre as prateleiras, atrás do balcão, servindo como plano de fundo para os balconistas do botequim. Seja como pinga, birita, goró, aguardente ou só cana, a cachaça virou cultural, ganhando o gosto do brasileiro e recebendo os mais diversos nomes por onde passou. Em mais de quatro séculos, foram cerca de 400 termos criados, segundo o Mapa da Cachaça. Seu surgimento é cheio de mitos e estórias. Uma delas narra que a bebida surgiu acidentalmente após um escravo deixar a “cagaça” – espuma que surge durante a fervura do caldo da cana e que servia para alimentar animais – armazenada em um recipiente. Com o tempo, o líquido fermentou e, nos processos de evaporação e condensação naturais, formou pequenos pingos da bebida no teto do engenho. De acordo com essa versão, o termo “pinga” teria surgido daí.
Da cana-de-açúcar também são produzidos açúcar, mel e rapadura, mas é a cachaça, descoberta por acaso segundo imaginário popular, que rende frutos ao setor na Paraíba. Além da importância cultural, histórica e econômica, a cachaça também é protagonista do turismo. Os engenhos hoje apostam na visitação como incremento econômico e cultural da cachaça na região.
A cana-de-açúcar exerceu tanta influência no estado que escritores paraibanos, como José Lins do Rego e José Américo de Almeida construíram suas principais obras a partir de uma narrativa que se confunde com a história do cultivo da cana no estado. Lins do Rego, por exemplo, escreveu cinco grandes obras que contam cronologicamente o ciclo da cana-de-açúcar, como veio a ser chamado posteriormente. Seja em Menino de Engenho, em Doidinho, em Bangüe, em Usina ou em Fogo Morto, os engenhos foram pautados como uma das bases da construção da Paraíba, sobretudo na região do Brejo, onde, até hoje, estão localizados os principais engenhos do estado.
De Areia ao álcool, a história da cachaça a partir do Brejo paraibano
A Paraíba, não diferente de outros estados, começou o cultivo da cana ainda muito cedo no Brasil Colônia. De início, assim como os demais, o foco era a produção de açúcar, que foi o primeiro “ouro” do país e a base da economia na época. De lá para cá a cachaça ganhou o mercado paraibano e hoje, o estado é um dos principais produtores de cachaça da região Nordeste.
Na Paraíba são 197 marcas de cachaça registradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa. De acordo com o anuário, “A cachaça no Brasil – Dados de registro de cachaças e aguardentes” publicado em 2021 pelo ministério, o estado teve, em 2020, um aumento de 21% no número de estabelecimentos produtores de cachaça em relação ao ano anterior, figurando entre os 10 estados com maior quantidade de estabelecimentos. Das 197 marcas da bebida registradas na Paraíba, 80 são da cidade de Areia que se destaca também pelo número de estabelecimentos produtores, com um total de 9 engenhos.
Areia é a Capital Paraibana da Cachaça, segundo a Lei Nº 11.873 de 2021. O município fica no Brejo, onde estão as empresas aguardenteiras mais tradicionais do estado. É na região onde são produzidas as cachaças Gregório, Jureminha, Volúpia, Alegre, D’dil, Maribondo, Rainha, Serra Limpa, Serra Preta, Serra de Areia, Ipueira, Matuta, Triunfo, Turmalina da Serra e Vitória, sendo as últimas seis, produzidas em Areia.
Engenho Triunfo é um dos principais produtores de cachaça da Paraíba. — Foto: Reprodução/Engenho Triunfo
O Engenho Triunfo, fundado em 1994, é responsável pela fabricação da cachaça de mesmo nome. Propriedade do casal Júlia Baracho e Antônio Augusto, o Triunfo nasceu de um sonho dele, que logo passaria a ser dos dois. Com uma quantia que recebera de herança, Antônio comprou a primeira moenda e o primeiro alambique e montou, com a mulher, o que viria a se tornar um dos principais produtores de cachaça da Paraíba, o Engenho Triunfo.
“O grande desafio era que ele não sabia fazer a cachaça e começou a produzir do ‘eu acho que’. Na época eu trabalhava dez horas fora de casa e só a noite a gente se encontrava para eu provar o que ele tinha feito durante o dia. Na época a internet não era comum como hoje e não haviam cursos de produção da bebida que fossem viáveis aqui. A cachaça ainda era um produto muito subestimado pela sociedade. Então na época ele foi fazendo do ‘eu acho que’, baseado no que meu pai ensinou de que uma boa cachaça é aquela que não desce queimando na garganta”, explicou Júlia.
Segundo a dona do Engenho Triunfo, eles aprimoraram a produção somente no final da década de 90, quando o professor Fernando Valadares Novaes, pesquisador especialista na produção da bebida, ministrou um curso no Bregareia, festival de cachaça e rapadura que acontece na cidade de Areia. “Daí em diante ele passou a fazer uma boa cachaça. Só que tivemos muitos gargalos, porque a nossa primeira cachaça foi engarrafada em garrafa PET e acabamos criando um grande estoque porque não conseguimos vender”, relatou.
Júlia Baracho passou então a trabalhar como Analista Eleitoral, o que proporcionou uma renda suficiente para que comprasse uma casa, no primeiro ano, e logo depois investisse na produção da cachaça. Foi a partir daí que mudou-se a embalagem e o rótulo da bebida, que faz referência a cidade onde é produzida. Em 2006, Júlia apostou na cachaça e abandonou o emprego para sair vendendo a Triunfo de bar em bar e a bebida ganhou o seu espaço a partir do trabalho e da história do casal.
Hoje, o Engenho Triunfo tem a Paraíba como principal mercado, mas também abrange os mercados de Pernambuco e Rio Grande do Norte, além de alguns estados do Sudeste. Produz mais de 500 mil litros por safra e possui diversos produtos como a Triunfo Branquinha, a Triunfo Premium que passa dois anos em um tonel de carvalho americano ou francês a Triunfo descansada no bálsamo, na umburana, no jequitibá rosa, na castanheira e no carvalho, que dá o sabor amadeirado na bebida. “Antes não era costume consumir a cachaça amadeirada, mas depois que a gente lançou a Triunfo descansada na umburana, pegou bem e hoje há uma procura muito grande no mercado”, disse Júlia, completando que “o engenho está sempre engajado em lançar para o mercado aquilo que o consumidor tem demandando, já que há sempre uma mudança nos costumes de consumo da sociedade”.
O processo de produção no engenho segue os passos tradicionais da fabricação da cachaça. A cana é cortada crua, em seguida passa por duas moendas para extrair o máximo do caldo, que é filtrado, decantado e levado para a sala de fermentação. Entre 20h e 24h depois, diz-se que foi produzido o vinho da cana-de-açúcar, que não é consumido porque é laxativo. O produto é levado para destilar no alambique e a partir daí virar a cachaça.
“O alambique funciona igual a uma panela de pressão. As caldeiras têm a função, exclusivamente, de produzir o vapor que vai aquecer esse alambique. A 78º o álcool do vinho da cana já começa a subir em forma de vapor e a cachaça vai ser, justamente, fruto desse vapor que passa por uma serpentina que está dentro de um condensador. Quando a água fria toca nessa serpentina, que está com a cachaça em forma de vapor, há um choque térmico e a bebida vai cair embaixo, bem branquinha em forma de líquido. Para que essa cachaça tenha qualidade se faz necessário dividir em três partes: cabeça, coração e cauda. A cabeça e a cauda contém elementos químicos que fazem muito mal à saúde, só o coração é útil para consumo”, explicou Júlia Baracho. Segundo ela, no Triunfo não há mais o desperdício dessas duas partes, porque foi desenvolvida uma tecnologia que transforma, tanto a cabeça quanto a cauda da cachaça, em combustível, que não pode ser vendido, mas pode ser consumido internamente, o que gera uma grande economia à empresa.
Engenho Vaca Brava — Foto: Reprodução/Cachaça Matuta
A cidade de Areia também é terra do Engenho Vaca Brava, produtor da Cachaça Matuta, uma das mais famosas da região. O engenho tem mais de dois séculos, sendo um dos mais tradicionais do estado. Lançada por Aurélio Júnior, a Matuta faz referência aos comerciantes da cachaça a granel, chamados de matutos, que passavam pelo engenho para comprar a brejeira.
Seja a cachaça Matuta, a Triunfo, a Baraúna, a Alegre, a Serra Limpa, a Gregório, a Jureminha, a Tambaba ou a Rainha, as marcas fizeram da bebida um Patrimônio Cultural e Imaterial da Paraíba desde 2010. No dia 10 de junho é comemorado o Dia Estadual da Cachaça, em reconhecimento da bebida como símbolo cultural e histórico paraibano. Na vida do produtor, do dono do bar, que comercializa, ou na vida do consumidor, a cachaça sempre será figura principal como produto genuinamente brasileiro.