Era um sábado, 25 de novembro de 2017. Início de noite. Ivandiely Menezes, então com 32 anos, estava em seu quarto com um namorado quando sentiu uma fortíssima dor de cabeça. Foi à sala do apartamento localizado no bairro dos Bancários, em João Pessoa, atrás de um remédio. E, por se sentir cada vez pior, resolveu ir ao banheiro. Lá, perdeu os sentidos. Desmaiou. Caiu no chão sem reações e sem oferecer resistências frente ao impacto.
Três pessoas correram em seu socorro. O namorado, uma amiga que dividia apartamento com ela, uma vizinha enfermeira que escutou os gritos. Momentos de angústia e de incerteza até a enfermeira perceber as características peculiares e dar a ordem de forma mais efetiva:
“Ela está tendo um AVC. Vão imediatamente para o Trauma”, gritou a enfermeira, se referindo ao Hospital de Emergência e Trauma de João Pessoa.
Era uma notícia surpreendente. Ivandiely sentia-se bem, não tinha problemas de saúde aparentes, nunca havia reclamado de dores. Num momento, estava bem, em casa, curtindo o fim de sábado depois de um dia na praia; no outro, estava entre a vida e a morte sendo levada para um hospital.
“O AVC não me deu nenhum sinal antes. Nada que me alertasse”, adverte.
Ivandiely pouco depois do AVC: “um milagre” — Foto: Arquivo Pessoal
Um problema grave e silencioso
A Organização Mundial de Saúde (OMS) atesta que problemas provocados pelo coração são a principal causa de mortes no mundo. E que o enfarto e o Acidente Vascular Cerebral, o AVC, são os dois tipos mais letais de problemas cardíacos. Um problema, pois, que embora atinja mais os idosos, afeta também pessoas jovens como Ivandiely.
“O enfarto e o AVC não avisam que vão acontecer. Não existe até hoje um exame apropriado que preveja que isso vá acontecer antes. O que tem de melhor é o controle dos fatores de risco”, destaca Guilherme Athayde.
Ainda de acordo com o médico, é por isso que a OMS definiu o Setembro Vermelho, que serve para conscientizar para os riscos das doenças cardiovasculares em todo o mundo. No Brasil, uma série de atividades aconteceram ao longo do mês, organizado localmente pela Sociedade Brasileira de Cardiologia.
“Sem conseguir prever o problema, a gente precisa atenuar os fatores de risco”, comenta, destacando a necessidade de controle da pressão arterial e das taxas de diabetes, de se fazer exercícios físicos, combater à obesidade, evitar o tabagismo.
Guilherme Athayde, cardiologista — Foto: Arquivo Pessoal
Guilherme enfatiza ainda que é importante evitar carboidratos e gorduras em excesso, ao tempo que é necessário privilegiar frutas, vegetais e cereais. “O conjunto desses fatores levam a pessoa a ter menor chances de sofrer um AVC ou um enfarto”, declara.
O médico diz também que é fundamental avaliar os níveis de estresse, porque isso também pode afetar as pessoas. “Tudo pode ajudar. Praticar o controle da respiração, fazer ioga, tentar se acalmar. Pessoas mais tranquilas, menos estressadas, têm menos risco”, define.
A luta para seguir vivendo
Ser saudável é importante, pode salvar a sua vida, mas isso não é garantia de que nenhum problema vá acontecer. De toda forma, dois fatores podem ter sido fundamentais para Ivandiely Menezes ter sobrevivido naquela noite de novembro de 2017. O primeiro deles é justo o fato de ela à época ser uma pessoa saudável, sem fatores de risco que se justificassem aparentemente. O segundo, certamente, a rapidez com que ela foi atendida.
Natural de Rio Tinto, no Litoral Norte paraibano, onde costumava passar os fins de semana ao lado da filha Maria Eduarda, ela passava a semana em João Pessoa por causa de seu mestrado em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba. Pois, justo naquele fim de semana, resolveu permanecer na capital paraibana também durante o sábado e o domingo. Para Ivandiely, foi esse acaso que a salvou.
Ivandiely Menezes passou algum tempo internada no hospital. Quando saiu, estava com o lado esquerdo do corpo completamente paralisado, sem forças inclusive para manter o peso do próprio tronco ereto. Estava cega de um olho, não conseguia falar, não sabia qual seria o futuro de sua vida.
Ivandiely pouco depois do AVC: cega de um olho e com todo o lado esquerdo paralisado — Foto: Arquivo Pessoal
Jovem, viu de repente a vida ficar suspensa. Foi levada de volta a Rio Tinto e passou um tempo morando com os seus pais. Na cidade, começou um longo processo de recuperação que, embora tenha registrado boa evolução ao longo de cinco anos, está longe de chegar ao fim.
Entre as sequelas mais graves, está a do braço esquerdo, cujo movimento ainda hoje não voltou. A mão também é um problema. “Tenho movimentos involuntários de fechar a mão e não consigo abri-la sozinha”, lamenta.
Além disso, destaca a dificuldade de fazer duas ações ao mesmo tempo. Questões simples que viram verdadeiros desafios. “Eu não consigo fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Falar e andar são atividades difíceis de fazer simultaneamente. Ou faço um, ou faço outro. Deixou de ser automático”.
De acordo com ela, os neurônios afetados estão mortos e não podem ser recuperados. E o desafio é buscar novas conexões entre os que não foram atingidos para recuperar funções suspensas. “Tenho que lembrar o tempo todo ao cérebro que ainda tenho o lado esquerdo”, resume.
Ivandiely e a fisioterapia: trabalho incansável para recuperar a independência — Foto: Arquivo Pessoal
Preconceitos escancarados – e vencidos
Ivandiely Menezes fala também dos preconceitos que precisou enfrentar. E o primeiro deles foi na própria questão do tratamento. Por exemplo, ela destaca que, por causa do AVC, adquiriu epilepsia e convulsões. Em paralelo a isso, precisava tomar uma medicação fortíssima para diminuir a espasticidade, que é a perda de flexibilidade dos músculos do corpo. Tinha efeitos colaterais pesados, até ouvir falar dos efeitos terapêuticos do óleo da cannabis, algo que por muitos anos lhe foi omitido pelas pessoas que a cercavam.
“Ainda existe muito preconceito, mas aos poucos fomos vencendo. Descobri a Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) e hoje eu recebo todos os meses a medicação à base de Cannabis. Há três anos a epilepsia está controlada e já não preciso tomar o outro remédio para diminuir a espasticidade”, comemora.
Depois de receber remédios da Abrace, Ivandiely conseguiu controlar a epilepsia e diminuir a espasticidade — Foto: Comunicação/Abrace
“Você se torna protagonista de sua própria recuperação. E eu fui desbravando sozinha. A gente vai pesquisando e descobrindo novos caminhos”, ensina Ivandiely.
A antropóloga comenta ainda outra questão difícil, principalmente para mulheres. Uma idealização do corpo feminino por parte dos homens, que acabam se afastando de mulheres com algum tipo de problema físico. Ela disse que sentiu isso na pele durante muito tempo e que foi algo que afetou gravemente a sua autoestima.
“Tem essa questão do padrão, do corpo perfeito para a mulher. Quando a gente tem problemas com um AVC, sofre muito com o olhar. Todo mundo lhe olha na rua. Deixa-lhe intimidada”, lamenta.
Foi um processo. As redescobertas, a aceitação do próprio corpo: “É uma nova identidade. É uma nova vida”, enfatiza ela.
Demorou para a primeira ida à praia: Ivandiely explica que aceitar o próprio corpo após um AVC leva tempo — Foto: Arquivo Pessoal
Tudo isso, de certa forma, paralisou a sua vida por alguns anos. E só recentemente voltou a ter uma vida social mais ativa. Foram quatro anos e meio até ter coragem de voltar a dançar, ainda que de forma lenta e limitada, e o mesmo tempo até voltar a se relacionar afetivamente. “Estou de crush novo. Voltei à ativa”, fala, aos risos, felicidade perceptível na voz.
Não foi fácil. Ivandiely diz que era “vista como diferente” e isso a deixava insegura, com medo de se relacionar. Sentia que as pessoas não tinham interesse por ela e que isso a afetou bastante. Hoje, mesmo com as limitações, percebe que o pior já passou.
Já voltou a morar na sua própria casa, ao lado da filha, e tem uma vida 100% independente. De forma mais lenta, é bem verdade, mas já faz tudo. “Moramos eu e minha filha. E hoje eu faço tudo. Tomo banho, faço almoço, pratico exercícios, limpo a casa, trabalho”.
Ivandiely e a filha: “foi por ela que eu enfrentei tudo isso” — Foto: Arquivo Pessoal
Ainda assim, os desafios continuam a ser vencidos. Um mês atrás, com saudades de amigas do tempo de mestrado (que ela finalizou em 2019, mesmo depois do AVC), marcou um almoço na capital paraibana. Pegou um ônibus em Rio Tinto, desceu na rodoviária, foi até o restaurante reencontrar as amigas. Foi um dos dias mais felizes dela no ano.
“Foi minha primeira viagem sozinha. É uma conquista imensa. Porque Rio Tinto virou minha zona de conforto. E sozinha em João Pessoa, qualquer batente é um desafio. Foi uma vitória incrível”, festeja.
No processo de cura e de reinício, quer voltar em breve à sala de aula. Diz que voltou a estudar. Está se preparando para a seleção do doutorado em Antropologia da UFPB. Quer, de certa forma, estudar a si. Ou, ao menos, mulheres como ela.
“Quero analisar a ressignificação dos corpos com mulheres pós-AVC”, finaliza.
Ivandielly finalizou o mestrado em 2019 e agora quer pesquisar no doutorado as mulheres pós-AVC — Foto: Arquivo Pessoal