SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) — O tribunal internacional que surgiu em 1966 para investigar crimes cometidos pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã (1959-1975) retomou nesta quarta-feira (25) o julgamento que vai avaliar se o presidente Jair Bolsonaro (PL) cometeu ou não crimes contra a humanidade durante a pandemia da Covid-19.
A previsão é que o julgamento termine nesta tarde.
A denúncia foi feita em conjunto pela Comissão Arns (Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns), Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), ISP (Coalizão Negra por Direitos e a Internacional de Serviços Públicos).
O TPP (Tribunal Permanente dos Povos) é considerado como um tribunal de opinião com impacto simbólico e reputacional: profere vereditos sem aplicar penalidades.
A peça acusatória aponta para uma disseminação intencional do coronavírus a partir de ações e omissões do governo brasileiro, o que teria afetado desproporcionalmente as populações indígena e negra bem como os profissionais de saúde, acentuando violações de direitos humanos, vulnerabilidades e desigualdades que promoveram mortes evitáveis.
A acusação é sustentada a partir do salão nobre da Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, durante a 50ª sessão do TPP, realizada simultaneamente na capital paulista e em Roma, onde fica a sede do órgão.
Os 12 membros do júri, de sete nacionalidades diferentes, participam remotamente.
Nesta terça, na abertura da sessão, ex-ministro da Justiça e presidente da Comissão Arns, José Carlos Dias, apontou para a política de desmonte e destruição do governo federal e condenou a leniência do centrão do Congresso Nacional, a partir dos quais emergiu o apelo ao Tribunal, “para despertar a opinião pública” que, ao ter “seus direitos enxovalhados, clama por Justiça”.
O secretário-geral do TPP, o médico italiano Gianni Tognoni, explicou que a sessão foi resultado de um processo de seis meses nos quais a denúncia foi apresentada e aceita “com base na documentação impressionante preparada pelas organizações que representam os povos brasileiros”.
“Está claro que a pandemia poderia ter tido um desfecho totalmente diferente dependendo da situação democrática e do reconhecimento dos direitos dessas populações”, afirmou.
Tognoni explicou que o governo brasileiro foi notificado sobre a sessão do TPP por meio de sua representação diplomática em Roma, do Itamaraty e do Palácio do Planalto.
Em nota, o Itamaraty informou que o TPP é uma iniciativa da sociedade civil e “não se confunde com atuação de tribunais internacionais, constituídos pelos Estados, perante aos quais o Itamaraty tem competência para representar a União”.
A AGU (Advocacia Geral da União), também por meio de nota, informou não haver atuação prevista do órgão, uma vez que “não existe Tribunal Permanente dos Povos no sentido jurídico do tema, muito menos ao qual o Brasil tenha aderido por meio de tratado internacional”.
Ao reunir evidências e testemunhas que indiquem violações graves, no entanto, o TPP alerta a comunidade internacional, o que promete expor internacionalmente o governo brasileiro e seu atual presidente.
O julgamento do TPP reúne e organiza provas de que direitos fundamentais de povos foram violados, informando instituições dos sistemas internacional e regional de Justiça, como o Tribunal Penal Internacional (TPI) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que podem vir a julgar formalmente esses casos, com penalidades concretas previstas para indivíduos e Estados.
Bolsonaro foi alvo de ao menos cinco denúncias enviadas ao Tribunal de Haia (TPI), das quais uma está sob análise preliminar de jurisdição da Procuradoria e outras duas foram protocoladas na corte internacional, criada pelo Estatuto de Roma, de 1998, para tratar dos crimes considerados os mais graves e que não podem ficar impunes, como o genocídio e os crimes contra a humanidade.
“A questão da impunidade é crucial nesse processo de denúncia ao TPP porque nenhuma das acusações que foram feitas contra o presidente brasileiro e seu governo, em especial a partir da CPI da Covid, teve consequências no Brasil”, afirma o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos e membro fundador da Comissão Arns.
“O presidente comete crimes de responsabilidade cotidianamente, mas tem contado com uma garantia de impunidade por parte da Procuradoria-Geral da República”, avalia Pinheiro, sobre o comportamento do procurador-geral da República, Augusto Aras.
“O TPP exprime essa insatisfação e revolta com a impunidade diante de crimes tão bem fundamentados.”
Entre as testemunhas ouvidas no primeiro de dois dias previstos de julgamento estiveram o senador da República Humberto Costa (PT-PE), integrante da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o governo de Jair Bolsonaro em sua condução da pandemia, e Deisy Ventura, professora de saúde pública e autora de pesquisa que investigou 3.049 normas federais produzidas em 2020 sobre Covid-19.
O TPP nasceu como Tribunal Russell, organizado pelo filósofo, matemático e Nobel de literatura britânico Bertrand Russell (1872-1970) para investigar violações cometidas pelas forças militares dos EUA na Guerra do Vietnã.
Conhecido também como Tribunal de Estocolmo e Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, seu júri foi presidido pelo filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, e composto pela escritora Simone de Beauvoir, o político italiano Lélio Basso e escritor argentino Júlio Cortazar, entre outros.
Em 1979, a partir dos princípios da Declaração Universal dos Direitos dos Povos, criada em 1976, por iniciativa de Lélio Basso, o Tribunal Russell se tornou Tribunal Permanente dos Povos.
A advogada Eloísa Machado, professora de Direito Constitucional da FGV Direito e integrante da Comissão Arns, explica que o TPP “surge com o propósito de dar vazão e visibilidade a temas que não encontram apoio nos sistemas formais de Justiça, seja por falta de acesso ou de condições políticas para o processamento de denúncias”.
Segundo ela, “a centralidade do TPP é a escuta dos povos afetados” e, com isso, o tribunal “evidencia lacunas no sistema formal de Justiça, antecipando movimentos” que depois buscam preencher esses vácuos.
Como exemplos, Eloísa cita o fato de o TPP ter sido o primeiro a se debruçar, ainda nos anos 1970, sobre violações cometidas pelas ditaduras latino-americanas, e também o primeiro a julgar casos contra empresas transnacionais -algo que só agora o sistema internacional avalia como viável.
“Por isso, o TPP é uma instância de visibilidade e de reparação simbólica para crimes que foram cometidos sistematicamente na pandemia e que não encontram eco em nenhuma das jurisdições formais, nacionais ou internacionais”, diz.
Eloísa foi a responsável pela sustentação oral da acusação contra o presidente, ao lado de Maurício Terena, advogado e assessor jurídico da Apib, e de Sheila de Carvalho, advogada e articuladora da Coalizão Negra por Direitos.
O júri responsável pela 50ª Sessão do TPP é composto por Luigi Ferrajoli, ex-juiz italiano, Eugênio Raúl Zaffaroni, juiz argentino da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Vivien Stern, baronesa britânica e membro independente da Câmara dos Lordes no Parlamento do Reino Unido, Jean Ziegler, sociólogo suíço e ex-relator da ONU para o direito à alimentação, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, Alejandro Macchia, médico argentino, Clare Roberts, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e ex-juiz da Suprema Corte do Caribe Leste, Joziléia Kaingang, geógrafa e antropóloga da etnia Kaingang, Kenarik Boujakian, jurista e magistrada brasileira nascida na Síria, Luís Moita, professor de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, Nicoletta Dentico, jornalista e escritora italiana, Rubens Ricupero, diplomata e ex-Secretário de Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, e Vercilene Kalunga, advogada popular e quilombola do Quilombo Kalunga.
Para Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Apib, o momento “é muito oportuno” para que esses elementos sejam trazidos a público.
“Passamos por uma série de violações provenientes de omissões do Estado brasileiro e de ações que contrariam direitos já regulamentados não só no ordenamento jurídico brasileiro como também nos tratados internacionais”, disse a liderança indígena.