Júlia dos Anjos, Anielle Teixeira, Rebeca Cristina e Fernanda Ellen. Crianças e adolescentes vítimas de uma violência desproporcional. Donas de histórias dolorosas que ficaram marcadas na lembrança da Paraíba. Inclusas também nas estatísticas da Unicef, que mostram que essas crianças morrem, com frequência, em decorrência da violência doméstica, perpetrada por um agressor conhecido, pessoas inseridas na rotina. Em todos os casos, um só acusado ou suspeito: o agressor.
Os casos citados acima vêm à tona depois de um deles apresentar um desfecho trágico nesta terça-feira (12). Um homem foi preso suspeito de matar Júlia dos Anjos Brandão, uma adolescente de 12 anos, que sumiu na última quinta-feira (7), em João Pessoa. Francisco Lopes era padrasto da vítima e confessou que matou a menina. A Polícia Civil encontrou o corpo na região da Praia do Sol, no bairro de Gramame, no mesmo local onde o suspeito indicou e próximo a casa da família. Ele a teria matado por asfixia.
Júlia é mais uma adolescente a entrar para as estatísticas. Um estudo da Unicef revela, que entre 2016 e 2020, 35 mil crianças e adolescentes de 0 a 19 anos foram mortos de forma violenta em todo o Brasil – uma média de 7 mil por ano. Na Paraíba, só em 2020, a taxa de crianças e adolescentes mortos entre 10 e 19 anos era de 20,18. De acordo com a Unicef, a violência contra a criança acontece, principalmente, em casa.
Após dez anos, crimes ainda são semelhantes – relembre alguns casos
Júlia desapareceu em João Pessoa após receber mensagens de pessoas desconhecidas pela internet — Foto: TV Cabo Branco/Reprodução
Júlia dos Anjos, 12 anos
A menina Júlia dos Anjos, de 12 anos, desapareceu no dia 7 de abril de 2022. O corpo foi encontrado nesta terça-feira (12) no mesmo local onde o suspeito de matar a adolescente indicou e próximo a casa da família. Franciso Lopes, suspeito do crime, é padrasto da vítima, e a teria matado por asfixia.
Segundo Rodolfo Santa Cruz, titular da delegacia de homicídios da capital, o padrasto foi ouvido pelo delegado Hector Azevedo, que disse que após a confissão, Francisco indicou onde estaria o corpo da menina.
Júlia dos Anjos morava com a mãe, Josélia Araújo, e o padrasto, Francisco Lopes, no bairro de Gramame, em João Pessoa. A mãe relatou inicialmente que a filha havia recebido mensagens de uma mulher na quarta (6), que alegou gostar do perfil dela no Instagram, e teria se oferecido para dar dicas de marketing digital para a adolescente.
A mulher desconfiava que esse poderia ter sido um dos motivos do desaparecimento da filha, hipótese que foi descartada posteriormente.
Nesta terça-feira (12), as suspeitas recaíram contra o padrasto, que após novo depoimento confessou o crime. Francisco Lopes teve a prisão preventiva decretada e foi levado para o presídio. Ele alegou que cometeu o crime porque a adolescente não aceitava a gravidez da mãe
Anielle Teixeira foi encontrada morta após três do desaparecimento, em João Pessoa — Foto: TV Cabo Branco/Reprodução
Anielle Teixeira, 11 anos
O corpo de Anielle Teixeira, de 11 anos, que desapareceu no dia 5 de setembro de 2021, foi encontrado na madrugada do dia 8 do mesmo mês em uma mata no bairro de Miramar, em João Pessoa. Conforme informações da Polícia Civil, o corpo dela foi encontrado apenas com a blusa. Ela sumiu na madrugada de um domingo, depois de sair da praia do Cabo Branco de bicicleta com um homem.
Na época, a delegada Luisa Correia adiantou que o corpo foi encontrado com sinais de decomposição, o que levaram a Polícia Civil e a perícia a acreditarem que a criança foi morta logo após a saída da praia, no mesmo local em que o corpo foi encontrado.
Além disso, no corpo, houve sinais de esganadura, mas apenas o laudo pericial poderia confirmar a causa da morte. A perita Amanda Melo revelou que havia suspeita de crime sexual, mas que a situação ainda seria investigada.
O suspeito do crime foi preso. A delegada explicou que tanto a mãe de Anielle quanto o homem faziam bicos no local, portanto, ele era conhecido da menina. O delegado Rodolfo Santa Cruz revelou que, conforme o depoimento do suspeito, ele conhecia a mãe de Anielle há cerca de seis anos e praticamente viu a criança nascer.
Corpo de Fernanda Ellen foi encontrado enterrado no quintal do vizinho — Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal
Fernanda Ellen, 11 anos
A estudante Fernanda Ellen, de 11 anos, passou três meses desaparecida, de janeiro a abril de 2013. O corpo dela foi encontrado enterrado no quintal do vizinho da família, Jefferson Soares, no Alto do Mateus, em João Pessoa. A polícia chegou até o assassino a partir da identificação do destino do celular da menina, que foi trocado por cinco pedras de crack dias depois de ter sido roubado.
A juíza Anna Carla Falcão entendeu que Jefferson, vizinho da vítima e que fazia parte do núcleo rotineiro de Fernanda, matou a estudante para roubar o celular dela e, por esse motivo, ele não foi a júri popular, como acontece nos casos de homicídio. A menina foi morta por asfixia, em consequência de um estrangulamento. Depois do crime, ele enterrou o corpo para que ninguém descobrisse que ela estava morta.
Assassino confesso, Jefferson Luís Oliveira Soares foi condenado a 31 anos de prisão pela morte de Fernanda Ellen.
Rebeca Cristina foi morta em João Pessoa em julho de 2011 — Foto: Reprodução/TV Cabo Branco/Arquivo
Rebeca Cristina, 15 anos
Rebeca, com 15 anos, foi estuprada e assassinada em 11 de julho de 2011, no trajeto entre a casa da família e o Colégio da Polícia Militar, em Mangabeira VIII, Zona Sul de João Pessoa. O corpo da estudante foi encontrado com diversos tiros em um matagal na Praia de Jacarapé, na tarde do mesmo dia. O único acusado do crime foi o cabo da Polícia Militar Edvaldo Soares da Silva, que era padrasto de Rebeca.
Segundo o inquérito policial, há pelo menos 22 indícios de envolvimento dele no crime. Para a polícia, a menina foi morta porque descobriu um caso extraconjugal do padrasto após ver mensagens no celular do suspeito. Ele foi condenado a 31 anos de prisão por estupro e morte da adolescente.
O que há em comum entre os casos?
Os quatro casos citados no início da reportagem vitimaram crianças e adolescentes. Júlia, 12 anos. Anielle, 11 anos. Rebeca, 15 anos. Fernanda Ellen, 11 anos. São representações de um leque de crimes muito maior. Meninas que estavam começando a entender a vida e a compreender o espaço que estavam inseridas. Não tiveram tanto tempo. Mas as trajetórias delas deixam um rastro: mortes provocadas por pessoas do núcleo familiar ou rotineiro.
Dentro de um ambiente em que se há uma rotina de convivência, a criança e adolescente tende a criar uma laço de confiança com o outro, seja homem ou mulher. Nesses casos, há uma situação de dupla vulnerabilidade: uma menina que também é criança/adolescente. “São relações íntimas, que têm vínculos familiares de afeto”, esclarece a advogada Izabelle Ramalho. E que, portanto, não geram, de início, nenhum tipo de suspeita ou contradição.
A advogada e presidente da Comissão da Mulher Advogadas da OAB-PB, Izabelle Ramalho, explica que é preciso olhar para esses casos na perspectiva de gênero. “A violência de gênero está atrelada à cultura, ao modo de pensar, os costumes. Quando a gente observa violências assim, precisamos adotar a perspectiva de gênero e debater, porque está atrelado à cultura, à submissão, à história de dominação”, explica Izabelle.
A violência no espaço familiar e também no espaço urbano está permeada por uma motivação de domínio sobre o corpo da mulher, explicada pelo que o patriarcado impõe: a dominação e regulação sobre os corpos femininos.
Por patriarcado, entende-se um sistema social baseado em uma cultura, estruturas e relações que favorecem os homens, em especial o homem branco, cisgênero e heterossexual. Essas relações são baseadas em uma dominação sexual do corpo da mulher e na situação de submissão, que desencadeia uma seria de violências colocando meninas e mulheres como vítimas diretas.
“Quando falamos em gênero estamos falando do comportamento e dos papeis assumidos por homens e mulheres na sociedade. O gênero feminino na sociedade, por exemplo, é visto com a ideia de submissão, dos corpos que ‘não são delas’, por isso é importante entrar em um estudo de gênero”, revela a advogada.
Esses papeis são indicados para as mulheres desde a infância, apontando maior vulnerabilidade construída a partir de discursos machistas e patriarcais. Essas mesmas meninas são vitimadas e culpabilizadas pelas violências sofridas, assim como as mulheres que estão a sua volta. Dessa forma, é possível compreender que esse tipo de violência é um reflexo da cultura em que estão inseridas.
Um estudo feito pelas pesquisadora Raquel Baptista e Ana Cláudia Bortolozzi indica que essa violência contra adolescentes pode ser entendida como um “entrelaçamento entre as questões de gênero e de geração”.
A culpabilização, por sua vez, é transferida para as mães, que acabam vivenciando uma situação de múltipla violência. Com companheiros que não demonstravam ser quem realmente são, essas mulheres são vítimas de uma violência silenciosa – a do relacionamento – e outra, ao mesmo tempo, gritante – a de perder a própria filha.
“Essas mães se anulam. A sociedade vai lá e culpa essa mulher. Elas chegam querendo construir a vida com outra pessoa e muitas vezes essa própria atitude é julgada”, diz a advogada.
De acordo com Izabelle Ramalho, é importante destacar que essas violências contra crianças e adolescentes acontecem independente do nível familiar, isto é, os suspeitos, muitas vezes, também são pais, tios, pessoas diretamente ligadas ao núcleo familiar e de sangue da criança.
“Não é fato de ser homem que vai fazer ele matar alguém. Existe uma índole por trás e esse homem é também fruto do patriarcado”, detalha Izabelle.
O que mudou de um caso para a o outro?
A principal mudança entre o primeiro caso citado (cronologicamente) nessa matéria, o de Rebeca Cristina, e a morte de Júlia dos Anjos, foi a criação da Lei do Feminicídio, que prevê circunstância qualificadora do crime de homicídio e inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos. A lei considera o assassinato que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Isso significa que os casos de Júlia e Anielle devem ser investigados como feminicídio, o que garante tratamento correto à situação.
Além disso, a discussões de gênero tornaram-se mais frequentes, inclusive no que tange a liberdade das mulheres. No entanto, ainda é preciso que as temáticas cheguem às escolas com mais naturalidade e que estejam inseridas no dia a dia de discussão de crianças e adolescentes.
Após os crimes, há leis que enquadram os casos da melhor forma. Mas o que pode ser feito para que crimes como esses não aconteçam?
Como você pode ajudar?
A Unicef elencou no Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil uma série de medidas fundamentais que precisam ser priorizadas, com foco em prevenir atos de violência letal e sexual contra crianças e adolescentes, e em dar respostas a esses crimes. Essas respostas pressupõem um olhar específico para as diferentes etapas de vida e para as diferentes formas de violência mais prevalentes em cada momento da infância e na adolescência.
Entre as principais recomendações, destacam-se:
Não justificar nem banalizar a violência
- Cada vida importa, e cada criança, cada adolescente deve ser protegido de todas as formas violências. Não se pode normalizar as mortes e a violência sexual, é preciso enfrentar esses crimes.
- Toda pessoa que testemunhar, souber ou suspeitar de violências contra crianças e adolescentes deve denunciar. Proteger é responsabilidade de todos.
Capacitar os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes
- Eles são fundamentais para prevenir, identificar e responder às violências contra a infância e a adolescência. Ampliar a implementação da Lei 13.431, voltada à escuta protegida de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência.
Trabalhar com as polícias para prevenir a violência
- Investir em protocolos, treinamentos e práticas voltadas à proteção de meninas e meninos.
Garantir a permanência de crianças e adolescentes na escola
- Entendendo a escola e os profissionais da educação como atores centrais na prevenção e resposta à violência.
Ampliar o conhecimento de meninas e meninos sobre seus direitos e os riscos da violência
- Para prevenir e responder à violência, é importante garantir que crianças e adolescentes tenham acesso a informação, conheçam seus direitos, saibam identificar diferentes formas de violência e pedir ajuda.
Responsabilizar os reais autores das violências
- Garantir prioridade nas investigações sobre violências contra crianças e adolescentes.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, a Paraíba era o 16º estado do país estado com maior taxa de feminicídios no Brasil por número de habitantes. Em relação ao Nordeste, a Paraíba divide com Alagoas o 3º lugar com maior índice de feminicídios.