Pintor, ilustrador, designer, cenógrafo, professor, decorador e figurinista, o paraibano Tomás Santa Rosa é considerado o pai do livro moderno. Protagonista na construção das artes gráficas no país, conseguiu romper com o academicismo e produzir, em volume e riqueza de estilos, grandes marcas na arte moderna do país. Nos 100 anos da Semana de Arte Moderna, não se pode falar de modernismo e esquecer seu nome.
Segundo o historiador Thiago Brandão da Silva, Santa Rosa é mais conhecido no Brasil e no mundo do que na Paraíba. Isso acontece principalmente porque o afro-paraibano estava inserido em um contexto pós-abolição.
“Atualmente não há um só espaço em efetiva atividade na Paraíba que tenha sido nomeado com seu nome. Isso por si só evidencia o tamanho de sua invisibilidade”, explica.
O legado do multiartista Santa Rosa é imenso. No teatro, produziu dezenas de cenários, incluindo peças de Nelson Rodrigues, óperas de Camargo Guarnieri e bailados de Villa-Lobos.
Fez o cenário para a peça “Vestido de Noiva” (1943), de Nelson Rodrigues, e por isso também é atribuída a ele a alcunha de criador da cenografia moderna brasileira.
Na pintura, o muralismo mexicano ajudou suas obras com cunho de crítica social a circular pelo país e outras regiões do mundo.
Nas artes gráficas, se tornou muito solicitado pelas maiores editoras e colocou sua marca em obras de José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Mário de Andrade, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
“O legado do afro-paraibano Santa Rosa deve ser resguardado, afinal, sua memória, sua história, seus ditos e feitos artísticos são alicerces de um patrimônio cultural que não pode se perder em meio a fumaça do tempo”, disse Thiago.
Capa do livro ‘Doidinho’ de José Lins do Rego, ilustrada por Tomás Santa Rosa — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Luís Bueno/’Capas de Santa Rosa’, 2015
Criança prodígio
Nascido em João Pessoa no dia 20 de setembro de 1909, Santa Rosa viveu por muitos anos com a família na rua da Areia, no Centro.
Aos cinco anos de idade, já demonstrava talento artístico e pintava painéis de grandes proporções, nas paredes de sua casa.
O pesquisador Rildo Cunha, autor da dissertação “Santa Rosa da linha e da cor: o passado presente por meio da escrita autobiográfica” (2018), explica que, na infância, o paraibano chamou a atenção do governador da Paraíba na época, Camilo de Holanda, ao desenhar bandeiras dos países aliados do Brasil, após o fim da I Guerra Mundial. O governador demonstrou o desejo de custear os estudos do garoto na Europa, porém sua mãe não aceitou separar-se do menino.
Paraibano Tomás Santa Rosa, aos 18 anos — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Cássio Emmanuel Barsante/’A Vida Ilustrada de Santa Rosa’, 1993
Sua primeira participação em uma exposição de arte foi aos nove anos, em um docel de São Francisco Assis, pintado sob inspiração religiosa.
Em João Pessoa, ele se formou em Ciências e Letras. O historiador Thiago Silvia, autor de “Trajetórias Históricas: as múltiplas faces do afro-paraibano Tomás Santa Rosa Jr. (1909-1956)” afirma que foi o audidatismo somado à vontade de ser artista que “o dividia” entre o mundo da arte e a vida do trabalho com números.
Santa Rosa foi contador em repartições públicas, como no Tesouro Estadual, enquanto vendia suas obras pela cidade.
Logo após uma participação em uma exposição modernista em Maceió, deixou seu emprego de contador aos 23 anos e mudou-se para o Rio de Janeiro, centro cultural do Brasil na época.
Rildo Cunha explica que a dedicação de Santa Rosa às artes plásticas não ocorreu de maneira contínua, mas sim periódica – principalmente pelo volume de atividades que ele desempenhava, paralelamente, como cantor, músico, professor de artes, artista gráfico, crítico de arte e cenógrafo.
Thiago reitera esse caráter multiartístico: “Ao conhecer sua obra, logo estamos diante da sua vida e memórias, percebemos que ele mesmo se fez cultura, em áreas artísticas das mais diversas, ‘espalhou-se’, como diziam seus amigos mais chegados”, cita.
Dessa forma, Santa foi se tornando um artista completo consciente de seus desafios, atento e sensível as transformações sociais e tecnológicas do seu tempo.
Rildo explica que em seu traço, Santa evidencia que as adversidades da vida foram dolorosas, mas também molas propulsoras, que o mantiveram em movimento constante, lendo, desenhando, pintando, escrevendo e produzindo cenários e cultura, sempre com um interesse vivo e constante:
“Suas limitações geográficas e econômicas na puderam conter sua imaginação, amplamente alimentada pela sua sensibilidade e polida como pedra que já fora lapidada muito antes, na infância, onde seu talento artístico precoce era já percebido”.
Sem título (1952), Tomás Santa Rosa — Foto: Rildo Coelha/Reprodução/Acervo cultural do INSS, Brasília
Regionalismo e versatilidade
As características modernistas no trabalho de Santa Rosa são evidenciadas não só pelo seu período de produção, mas também por seu estilo desenvolvido através do contato direto com as vanguardas europeias, como o cubismo e o surrealismo.
O paraibano viveu o ápice da segunda geração do modernismo, pós conjuntura da Semana de Arte de 1922.
Absorvendo as diversas influências da época, se tornou um pintor versátil e não se apegou a um único estilo.
Conforme Thiago: “É possível perceber algumas influencias em seu estilo, que durante sua trajetória foram utilizadas: cubismo, abstracionismo fauves, abstracionismo, expressionismo alemão e o muralismo mexicano. Suas motivações artísticas projetaram o regionalismo, o cotidiano da boemia carioca e a vida popular, uma vez que pescadores, baianas, samba, trabalhadores urbanos e do campo entre outros (as) personagens do dia a dia se fizeram presentes em seu legado de imagens”.
Um dos exemplos da valorização de elementos regionais pode ser visto nas suas obras mais famosas, como os pescadores de Tambaú retratados na obra ‘Pescadores’ (1943), presente no acervo do Museu Nacional de Belas Artes da cidade do Rio de Janeiro.
Pescadores (1943), Tomás Santa Rosa — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Cássio Emmanuel Barsante/’A Vida Ilustrada de Santa Rosa’, 1993
Quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1932, trabalhou como auxiliar de Cândido Portinari no acabamento de vários murais. A amizade com o pintor cresceu e em 1935 casou-se com Maria da Glória Monteiro, sua primeira esposa, na casa de Portinari – que foi o padrinho.
Ao analisar as cartas escritas pelo ciclo de amizades de ambos, Thiago afirma que é possível evidenciar que quase sempre se perguntava por um ou outro.
A amizade com “Candinho”, termo utilizado por em diversas cartas destinadas ao amigo, ultrapassa a simples relação na pintura. Ambos estiveram juntos em projetos e inclusive no ativismo político.
Santa Rosa esteve presente auxiliando o amigo Portinari na realização da pintura de azulejos da Pampulha, em Minas Gerais. Juntos também fizeram parte do Clube de Arte Moderna (CAM), célula politica da arte social vinculado a Aliança Nacional Libertadora (ANL), ramificação do Partido Comunista Brasileiro, conforme explica Thiago.
Lavadeiras da Paraíba (1945), Tomás Santa Rosa — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Cássio Emmanuel Barsante/’A Vida Ilustrada de Santa Rosa’, 1993
“Algumas de suas pinturas sofrem influência de Portinari e Picasso. De Portinari ficam claras as questões sociais e memórias afetivas da infância. A arte muralista também foi contemplada pela interpretação artística de Santa Rosa, com temática regionalista, no afresco Lavadeiras da Paraíba”, escreveu Rildo.
Outra paixão de Santa Rosa é a literatura. Do clássico ao contemporâneo, lia não apenas para entender os livros, mas para compreender a vida. Dessa forma, juntando as palavras com a pintura, conseguiu se tornar um grande destaque no mercado gráfico brasileiro.
Pai do livro moderno brasileiro
“Santa Rosa imprimiu uma nova maneira de conceber um projeto gráfico. Se é possível apontar algo inovador em suas feituras, certamente a sua maneira de conceber as “imagens sínteses”. Afinal, para Santa Rosa a arte de ilustrar não era a mesma da pintura”, disse Thiago.
O pesquisador explica que Santa Rosa diversas vezes defendeu a profissionalização da arte de ilustrar. No seu estilo, inovava pois trazia a xilogravura e o cubismo para o mesmo projeto gráfico.
Além disso, a diagramação trazia ritmo e harmonia por conta das suas escolhas tipográficas.
O momento histórico era propício para que Santa Rosa colocasse seus talentos a serviço de outra arte ainda não muito valorizada no Brasil. “Trata-se da arte de fazer livros”, conforme Rildo.
Capas de livros diversos ilustradas por Tomás Santa Rosa — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Rafael Cardoso/’O design brasileiro antes do design’, 2005
“Calculo que mais de 300 capas foram feitas por Santa Rosa entre 1933 até a sua morte em 1956. No feitio dos livros alguns de seus traços marcantes no estilo de Santa Rosa, ressalto a procura do elemento significativo, a exploração discreta da cor, o uso do espaço vazio e a busca pela tipografia ideal. Tudo isso vez dele o pai do livro moderno brasileiro”, explica o historiador Rildo Coelho.
Com sua inovação, o mundo das artes gráficas se tornou seu meio de sobrevivência, conseguindo assim uma boa condição financeira. Ele fazia o planejamento gráfico de livros e também desenhava as ilustrações.
Trabalhou nos principais jornais do país, especialmente os do Rio de Janeiro. Sua inovação foi tamanha que foi convidado para coordenar e lecionar no primeiro curso de artes gráficas do país, em 1946, na Fundação Getúlio Vargas.
Na Paraíba, participou do projeto que idealizou o suplemento literário do jornal A União, Correios das Artes – em circulação desde 1949.
Também lecionou no Museu de Arte Moderna em 1953 como professor de Desenho, estrutura e composição, segundo Thiago. Com uma grande produção, o professor explica que Santa Rosa protagonizou o layout padrão que passou a ser copiado para as demais editoras do país:
“É preciso entender que no tempo de Santa Rosa a indústria do livro se modernizava. E que a trajetória do artista gráfico Santa Rosa acompanhou esse “boom” do setor. (…) É dele praticamente a assinatura dos projetos gráficos de boa parte dos livros que foram publicados entre as décadas de 1930 – 1940 no país”.
Capa do livro ‘História da Velha Totonha’ de José Lins do Rego, ilustrada por Tomás Santa Rosa — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Museu José Lins do Rego
O cenário moderno
A premiada peça “Vestido de Noiva” (1943), do dramaturgo Nelson Rodrigues, dirigida pelo diretor polonês Ziembinski, foi um divisor de águas no teatro e um marco na cenografia.
No trabalho de Santa Rosa, Thiago destaca três características usadas que foram inovadoras para a época: a utilização da luz elétrica nas cenas; modelos de cenários feitos com exatidão; e o uso da tridimensionalidade.
“Vestido de Noiva” se passa em dois planos, em três tempos diferentes, em uma narrativa não linear. O plano acima do palco, retrata a realidade e o de baixo, memória e alucinação.
Cenário da peça ‘Vestido de Noiva’, de Nelson Rodrigues, feito por Tomás Santa Rosa. Paraibano tornou-se um marco na moderna cenografia teatral. — Foto: Rildo Costa/Reprodução
Antes de Santa Rosa, os cenários das peças brasileiras eram estáticos, mudando apenas as mobílias. Autodidata, nas suas produções usava luz e sombra posicionando uma série de holofotes e assim foi capaz de criar diferentes espaços cênicos que apareciam no palco de maneira concomitante.
Modernismo afro-paraibano
Com obras e contribuições extensas, é impossível falar de arte moderna sem citar Tomás Santa Rosa. O paraibano não sou produziu arte, mas também militou pela cultura em cargos públicos.
Foi Secretário Geral da Comissão Nacional de Teatro; pertenceu a Comissão e Cultural do Teatro Municipal (RJ); técnico de icnografia da Biblioteca Nacional; desenhista do ministério da Educação e Saúde e do Departamento Gráfico do Jornal Nacional; e secretário Geral do Instituto Brasileiro de Educação e Cultura.
Foi durante uma Conferência Geral da Unesco, realizada em 1956, em Nova Delhi, na Índia, que morreu após sofrer uma forte crise renal. Ele também estava no país representando o Brasil na Conferência Internacional de Teatro daquele ano.
Paulo Mendonça, Roberto Assumpção, Tomás Santa Rosa e Simeão Leal na Índia — Foto: Rildo Coelho/Reprodução/Cássio Emmanuel Barsante/’A Vida Ilustrada de Santa Rosa’, 1993
O pesquisador Thiago Silva acredita que estudos que colaboram com histórias de vidas no pós-abolição potencializam maior entendimento acerca da História do Brasil.
“A importância de estudar a vida, vivida pelo afro-paraibano Santa Rosa é chave para compreender o período pós-abolição, uma vez que há inúmeros exemplos de homens e mulheres negros e negras que após a abolição, contribuíram para construção cultural e artística do país. O legado do multiartista Santa Rosa é imenso”, conclui.
*Sob supervisão de Krys Carneiro