RIO E BRASíLIA – Assim que o tema chegou às salas e aulas pela curiosidade dos estudantes, e antes mesmo que as escolas pudessem discutir a melhor forma de abordar a questão, uma onda de projetos contra o uso de linguagem neutra tomou conta de casas legislativas de estados e municípios do país. Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa um pedido feito por professores para que não haja interferência externa nos debates acadêmicos, que já teve parecer favorável do ministro Édson Fachin, entidades e pessoas ligadas à causa LGBT levantam a bandeira da inclusão porque o dialeto que adotou o “todes” no lugar de “todos” já é uma realidade entre jovens não-biinários. Para especialistas, a língua portuguesa não sofre ameaça e a possibilidade de inclusão pela linguagem não pode ser ignorada. A tese é defendida na ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) apresentada no Supremo contra um projeto do governo de Rondônia, que proíbe o tema nas unidades de ensino, e pode vir a orientar a forma como ele passará a ser tratado daqui para frente.
A votação virtual, que até agora, só tem o voto de Fachin, que é o relator, enfrenta forte oposição. Até outubro, já havia 34 projetos de lei proibindo o uso da linguagem neutra em escolas, em assembleias legislativas ou câmaras municipais. Um deles é o de Rondônia, que está no centro da controvérsia. Uma lei estadual proibiu a linguagem neutra “na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas, assim como em editais de concursos públicos”. Por enquanto, está suspensa por uma liminar do próprio Fachin, mas os outros ministros da corte ainda vão opinar. O presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero LGBTQIA+ da seccional de Rondônia Ordem dos Advogados do Brasil, Cleverton Reikdal, afirma, entretanto, que a proibição em Rondônia surgiu para supostamente impedir uma iniciativa que nunca teria existido.
— A lei foi aplicada sem que nenhuma escola do estado demonstrasse interesse em adotar a linguagem neutra — afirma Reidkal — Passaram por cima da Constituição, que permite a manifestação cultural e debates sobre direitos humanos.
Decisão criará precedente
O que for decidido pelo STF sobre a lei de Rondônia servirá de precedente. A decisão, embora não se aplique automaticamente a outros casos, pode orientar juízes e tribunais de todo país. Além disso, se mais algum caso semelhante vier a ser analisado pelo STF, a Corte provavelmente decidirá da mesma forma.
No voto apresentado na sexta-feira, Fachin afirma que a linguagem neutra tem sido utilizada em outros países como forma de inclusão: “A chamada linguagem neutra ou ainda linguagem inclusiva visa a combater preconceitos linguísticos, retirando vieses que usualmente subordinam um gênero em relação a outro”.
Há no Supremo ao menos um caso que guarda semelhanças com o de Rondônia. O PT questionou um decreto de Santa Catarina que proíbe “novas formas de flexão de gênero e de número das palavras da língua portuguesa, em contrariedade às regras gramaticais consolidadas”, nos concursos públicos e nos documentos oficiais dos órgãos da administração pública e das instituições de ensino.
A ação tem como relator o ministro Nunes Marques, que determinou que a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União se manifestassem. A AGU defendeu o decreto catarinense, citando uma manifestação do Ministério da Educação também contrária. “As modificações da linguagem neutra, por serem alheias ao uso corrente da língua, são alheias ao cotidiano de crianças, jovens e adultos”, alegou a AGU.
Os 34 projetos contra a linguagem neutra até outubro foram contabilizados pela agência independente de jornalismo Diadorim. Até julho, eram 14 , segundo levantamento do GLOBO na época. Diretor da Contee, o professor Gilson Reis afirma que leis como a de Rondônia têm mais a ver com questões políticas e ideológicas.
— É uma iniciativa muito mais ideológica do que linguística. Sabemos que, na prática, a linguagem neutra é algo profundamente difícil de ser implementado, porque teria, por exemplo, de flexionar todas as palavras já existentes. É uma ação que parte de setores conservadores para travar uma luta política e ideológica — diz Gilson.
Para o linguista Rodrigo Borba, coordenador do programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, a linguagem neutra não representa risco ao português. Na sua visão, é uma forma de demonstrar respeito a pessoas que não se identificam com o gênero masculino ou feminino:
— Funciona como se fosse uma gíria, mas que é importante para demonstrar pertencimento e respeito a um grupo. Mudar a língua é um processo histórico, que não vai acontecer tão cedo.
Essência não muda, diz linguista
Borba conta que a atuação de movimentos LGBTQIA+ ao redor do mundo tem levantado debates de inclusão. Por não se encontrar naturalmente em nenhum idioma a linguagem neutra, grupos que não se sentem representados socialmente propuseram intervenções externas. No inglês, por exemplo, que não tem gênero gramatical, mas tem gênero lexical, tem ganhado força o uso da palavra “they” como singular, ao invés de marcar o gênero da terceira pessoa com “he” (ele) ou “she” (ela). Borba, ressalta, contudo, que a categoria é usada por determinados grupos e não altera a essência da língua inglesa.
A inclusão apontada por Borba é a mesma defendida por Brune Medeiros, de 23 anos, que começou a se reconhecer como uma pessoa trans não-binária em 2016. Além de não se identificar como um homem cisgênero (indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu gênero de nascença), ela acredita que não existe uma separação marcada somente pelo masculino e feminino que contemple a forma como se enxerga no mundo.
— Apesar de eu me identificar como uma pessoa não-binária, toda a minha luta para me reconhecerem enquanto travesti fez com que eu não me importasse que se refiram a mim como “ela”, no feminino. Mas isso é um ato político e varia conforme as vivências — explica.
Na faculdade de Letras da UFRJ, Brune descobriu a oportunidade de contribuir para o debate da linguagem neutra — também chamada de “pronome neutro”, “linguagem não binária” ou “neolinguagem” — uma proposta de adaptação da língua portuguesa para que as pessoas não binárias se sintam representadas. Assim, “amigo” ou “amiga” virariam “amigue”, segundo uma das propostas.
Sai o “x” entra o “e”
A sala de aula é o local onde Brune, a convite dos próprios alunos do 2º e 3º anos do ensino médio, explica o conceito. Em três palestras dadas no Colégio de Aplicação (CAP) da UFRJ, e também em suas aulas de idioma para estrangeiros, ela difunde o conceito de que a proposta da linguagem neutra não é mudar o português, mas permitir que pessoas como ela se sintam representadas:
— Esse debate há décadas vem sendo disseminado pelas redes sociais. Hoje empresas usam a linguagem neutra e isso gera comoção e, especialmente, curiosidade dos jovens. Saber sobre o tema não vai fazer com que eles usem ou deixem de aprender o feminino e masculino, mas gera consciência social e normalização da nossa existência.
De acordo com Brune, grupos de pessoas não-binárias criaram regras para uso correto e acessível dos termos. O “x” e o “@” passaram a ser substituídos por “e” e “u”, por exemplo, para tornar a leitura mais acessível a pessoas com deficiência visual. Ao todo, são mais de 117 normas atualizadas constantemente.