RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Quando decidiu escrever seu primeiro livro, “Arma de Fogo no Brasil: Gatilho da Violência”, o advogado Bruno Langeani teve como principal motivação seu trabalho no Instituto Sou da Paz, em torno do controle das armas e de políticas de redução da violência. Era início de 2018 e Jair Bolsonaro (sem partido), defensor do armamento da população, ainda não havia sido eleito presidente.
Nos anos seguintes, Bolsonaro editou uma série de decretos para facilitar o acesso e aumentar o limite para aquisição de armas e munições. Ele também revogou portarias do Exército que previam regras mais rígidas para marcação, controle e rastreamento.
“O governo Bolsonaro é o pior dos mundos”, diz Langeani. “Ele facilitou a compra e flexibilizou fortemente o tipo de arma que se pode ter e tirou o poder das polícias para se contrapor ao tráfico de armas.”
Embora não tenha sido motivado pelas políticas de flexibilização do presidente, o livro as insere, de forma didática, em um contexto histórico e em um apanhado de estatísticas que alertam para as graves consequências que podem trazer.
Com base nesses dados, Langeani conclui que, com mais armas em circulação no mercado legal, os desvios para a criminalidade também devem ser maiores, o que deve aumentar os índices de violência.
“Quando as pessoas viram o Bolsonaro revogando portarias de marcação e rastreamento, me perguntaram qual o motivo. Só ele pode responder”, afirma o autor. “Quem se beneficia de ter uma munição que não pode ser rastreada, ou uma arma com marcação mais fácil de ser removida? Só consigo pensar em grupos criminosos, em facções, milícias.”
Para o gerente do Instituto Sou da Paz, o desmonte do controle das armas no governo Bolsonaro não tem precedentes. Ele lembra, porém, que na década de 1990, antes do Estatuto do Desarmamento, também havia pouco controle sobre a compra de armamentos. Esse, para Langeani, foi um dos motivos que levaram ao crescimento das taxas de homicídio à época.
Ele lembra que o descontrole da década de 1990 ainda gera consequências hoje, e que isso é um aviso para que se possa projetar o cenário futuro após as políticas de flexibilização de Bolsonaro.
“A arma que está sendo usada para me roubar no ponto de ônibus é nacional e com idade avançada. Foi fabricada na década de 1980, 1990, e até hoje está circulando. O Brasil paga ainda hoje por um descontrole que teve na década de 1990”, diz.
Publicado pela editora Telha, o livro de Langeani chegará às livrarias neste mês, por R$ 39. Nele, o autor traz uma espécie de mapa das armas legais no país, com base em dados do Sinarm (Sistema Nacional de Armas) e do Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas).
Chama a atenção que cidadãos e CACs (colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) já contem com 1,2 milhão de armas, número superior ao armamento de todas as polícias militares e civis e de órgãos públicos no país.
“O que a gente está vendo é uma sociedade cada vez mais armada e especificamente um grupo de apoiadores do presidente tendo acesso a armas com maior poder que a própria polícia”, diz o autor.
Langeani afirma que os decretos de Bolsonaro “têm uma agenda oculta de violência política, de emparedamento das instituições”, a exemplo da invasão do Capitólio, em Washington (EUA), ação extremista liderada por apoiadores do então presidente americano Donald Trump. Bolsonaro já afirmou, em algumas ocasiões, que “o povo armado jamais será escravizado”.
Ainda que o presidente tenha conseguido flexibilizar o acesso às armas, agradando seus eleitores, especialmente os CACs, Langeani diz que Bolsonaro não conta com o apoio da maior parte da sociedade civil.
“As pesquisas mais recentes mostram o contrário, está crescendo a repulsa a armas no governo Bolsonaro. Talvez por ele se identificar tanto com essa pauta e por estar perdendo popularidade, isso possa estar piorando a aceitação dessa agenda de flexibilização”, afirma.
Para o autor, um dos maiores indicativos de que as medidas não têm apoio popular é o fato de o presidente tê-las aprovado por decreto, e não por meio de votação no Congresso. “O que nos dá uma impressão diferente, mais vocal, é que esses grupos pró-arma têm bastante dinheiro e fazem muito barulho. Conseguem fazer manifestações, chegar ao centro do poder”, diz.
Para além dos grupos apoiadores, afirma Langeani, as empresas de armas têm um lobby poderoso junto ao poder público. “A gente que frequenta muito o Congresso para essas audiências públicas vê que a indústria sempre tem uma equipe de três, quatro pessoas acompanhando as comissões que tratam do tema. E, quando a gente checa o acesso de lobistas de armas ao Executivo, a gente vê também que é um acesso frequente.”
Em seu livro, o advogado também se esforça para desconstruir a ideia de que as armas que circulam no mercado ilegal vêm, em sua maioria, de fora do país. Ele mostra que a maior parte do armamento apreendido no Brasil é composto de revólveres e pistolas nacionais, e não de fuzis importados.
“Esse discurso que se vê muitas vezes na boca de governadores é fortalecido pela indústria. Para as autoridades é de certa forma conveniente. Se você coloca o problema no Paraguai, eu não tenho muito o que fazer, é culpa do outro”, diz. “Não é um mito que surge do nada. Tem indústria mandando release para jornalistas, deputados, para tentar tirar sua parcela de responsabilidade sobre a violência no Brasil.”
O último capítulo do livro se dedica a apresentar soluções que possam evitar o acesso desenfreado às armas, assim como uma efetiva fiscalização que possa combater o tráfico de armamento, com bancos de dados atualizados, rastreamento e identificação de armas e munições apreendidas e cooperação entre as polícias.
Langeani critica a política de segurança pública do país por não priorizar o combate ao tráfico de armas. Ele lembra, por exemplo, que o país tem apenas duas delegacias dedicadas a esse tipo de investigação, enquanto há 172 para o combate ao tráfico de drogas.
“Parece absurdo (e é) que governadores(as) busquem prover segurança sem estabelecer políticas para lidar com os artefatos que produzem 7 em cada 10 mortes violentas no país”, escreve.
Para o autor, as polícias têm capacidade técnica para dar conta dessas investigações, mas o poder público prefere investir na guerra às drogas porque o resultado para a população é mais imediato.
“A política de drogas mobiliza bastante a população, esse apoio à proibição, e é uma política mais fácil de mostrar resultado imediato, ainda que não traga impacto de fato. É muito fácil gerar a prisão de um traficante”, diz. “Já a política de armas é um trabalho a longo prazo. Vai ficar quatro meses fazendo uma investigação para pegar alguém que está levando fuzis para os estados, trazendo pistolas de uma organização criminosa. Aparece menos.”