A Universidade do Kansas, nos Estados Unidos, devolveu no final do mês de outubro a aranha fóssil brasileira conhecida como Cretapalpus vittari, descrita em homenagem à cantora Pabllo Vittar.
O fóssil estava incorporado na coleção do Museu de História Natural da universidade, onde foi estudado pelo paleoaracnólogo britânico Paul Selden e seu aluno de doutorado, Matthew Downen, primeiro autor do artigo.
O material foi escavado na Bacia do Araripe, entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, uma das regiões mais ricas em fósseis do Brasil.
Além da aranha, outros 35 exemplares de aracnídeos do Araripe também foram devolvidos ao Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens — também conhecido como Museu de Paleontologia de Santana do Cariri —, no município de Santana do Cariri (CE).
Segundo Selden, o material foi coletado por ele e teve suas autorizações de coleta e exportação cedidas pelo então órgão responsável, o antigo DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral, hoje representado pela Agência Nacional de Mineração), ainda na década de 90.
“À época, havia poucos especialistas em aranhas fósseis, e nenhum no Brasil, por isso o material foi levado para uma coleção científica no exterior”, diz. Após os estudos científicos, o Museu de História Natural do Kansas incorporou o material à sua coleção.
Foi então com a publicação do estudo descrevendo a aranha na revista Journal of Arachnology e divulgação no Twitter em junho deste ano que a comunidade paleontólogica brasileira teve conhecimento do fóssil.
“Logo após a publicação do artigo, um aluno do MNRJ [Museu Nacional do Rio de Janeiro] entrou em contato comigo sobre a repatriação dos fósseis do Crato e me colocou em contato com o Renan [Bantim, do museu do Cariri]. A partir daí, eles assumiram a repatriação”, diz Downen.
“Apesar de ter a documentação legal para que esses fósseis fossem levados para fora no passado, o museu decidiu devolvê-los ao seu país de origem como um gesto de boa vontade internacional”, completa Selden.
O paleontólogo Renan Bantim, curador do museu e também professor na Universidade Regional do Cariri conta que esteve em contato com os pesquisadores da Universidade do Kansas para a devolução do holótipo, como é chamado o material-tipo que descreve uma espécie.
“Depois que entramos em contato para pedir a devolução do holótipo, tivemos conhecimento dos demais 35 exemplares. Então é o primeiro registro de repatriação de uma quantidade considerável de fósseis de maneira amigável, sem a necessidade de envolver processos jurídicos”, diz.
A espécie Cretapalpus vittari é importante por ser o mais antigo representante da família Palpimanidea, grupo de aranhas caracterizadas por um primeiro par de pernas bem alongadas e que são caçadoras ativas — diferentemente, por exemplo, das caranguejeiras, que possuem um hábito do tipo senta-e-espera, aguardando as presas se prenderem nas suas teias.
A espécie Cretapalpus antecede a origem da família Palpimanidae entre 10 a 13 milhões de anos, segundo Downen.
“Além disso, o fóssil pertence a uma subfamília [Chediminae] que até então era desconhecida para a América do Sul, descrita a partir de registros na África, sudeste da Ásia e no Oriente Médio, o que significa que essas aranhas se dispersaram pelo grande continente Gondwana antes da sua separação”, diz.
Para Bantim, a descoberta tem um grande potencial para ajudar a tecer a história evolutiva desses invertebrados. “Aranhas são raras no registro fóssil e, para a América do Sul, só conhecemos os depósitos do Araripe com fósseis de aranha. Então a espécie Cretapalpus vittari traz indícios de alguns grupos desses aracnídeos vivendo na região durante o Cretáceo Inferior, há cerca de 120 milhões de anos”, explica.
Os fósseis do Araripe apresentam, em sua maioria, uma preservação excepcional e, por isso mesmo, são tão visados no mercado internacional de tráfico para coleções privadas. “Por serem fósseis muito bem preservados, com muitos detalhes, são fósseis muito relevantes para a história evolutiva dos grupos”, diz.
Por essa razão, Bantim achou importante fazer o contato com o museu de Kansas, que entendeu a importância desse material ficar próximo de onde foi encontrado.
Para Renato Ghilardi, presidente da SBP (Sociedade Brasileira de Paleontologia) e professor da Unesp de Bauru, a repatriação significa preservação do patrimônio científico e natural do país.
“É indiferente se quem publicou o artigo é alemão, salvadorenho, australiano. Nós [da SBP] pedimos a repatriação de fósseis brasileiros para a preservação desse patrimônio histórico-cultural e biológico”, explica.
Ghilardi afirma ainda que após a repercussão do caso diversas instituições científicas estrangeiras entraram em contato para também devolver materiais do Araripe em suas coleções.
“Teremos nos próximos meses a repatriação de uma coleção de cerca de 150 insetos também para o museu do Cariri e de um celacantídeo [peixe do mesmo grupo que o celacanto, animal de águas profundas que vive na costa da África do Sul] para o Museu Nacional”, diz.
CASO UBIRAJARA
O caso da devolução de Cretapalpus lembra outra situação emblemática: o peculiar dinossauro brasileiro Ubirajara jubatus, descrito por pesquisadores alemães. A história desse fóssil causou comoção com a hashtag no Twitter #UbirajaraBelongsToBR (Ubirajara pertence ao Brasil), mas não teve sucesso na sua repatriação.
Ubirajara jubatus é o primeiro dinossauro não-aviano com penas conhecido para a América Latina. Sua descoberta foi anunciada em dezembro na revista científica especializada Cretaceous Research, que depois retirou o artigo, após as constatações de que o material foi levado de maneira ilegal para a Alemanha.
Ghilardi conta que tentou negociar a devolução do material com o Museu de História Natural de Karlsruhe. Porém, em setembro, o museu anunciou que não iria devolver o fóssil, porque o mesmo chegou ao país europeu antes da entrada em vigor da convenção internacional da Unesco que estabelece a devolução de artefatos naturais e, portanto, é propriedade legal do Estado alemão de Baden-Württemberg.
Embora a convenção da Unesco seja da década de 1970, uma lei da Alemanha, de 2016, preconiza que todo material levado para o país antes de 26 de abril de 2007 é considerado como legalizado no país.
O museu afirma que o fóssil está “preservado para a posteridade”, estando disponível para a comunidade internacional para propósitos científicos.
“Há um colonialismo científico quando países ricos tentam descreditar as instituições sul-americanas dizendo que não temos capacidade de manter nosso acervo e publicar. É chocante”, completa Ghilardi.