Desde o último dia 12 , quando o arcebispo de Aparecida Dom Orlando Brandes falou em sua homilia que ” para ser pátria amada não pode ser pátria armada ” surgiu nas redes sociais, nos meios católicos e políticos, um arroubo de opiniões, elogios e críticas. Acusações do tipo “bispo comunista”, “teólogo da libertação” , “usando o púlpito para discurso e opinião política” , ” jogando indireta para o presidente da República, ao invés de cuidar de temas da fé”. Mas afinal, qual a posição da Igreja com relação a esse tema? Dom Orlando manifestou realmente apenas uma opinião pessoal ou falou como bispo em nome da Igreja, sobre a fé, a doutrina católica? São justas as acusações sobre ele ou são fruto do grave pecado do levantar falso testemunho, fruto de uma política voltada para a mentira, a calúnia e o ódio?
O PAPA BENTO XVI RESPONDE SOBRE O ASSUNTO.
Um assunto que não é mera “opinião política” mas doutrina católica, podendo e devendo ser dito em palestras e homilias. O discurso abaixo foi feito pelo Papa Bento XVI em 2008 e deixa claro a posição da Igreja com relação ao tema.
” É com profundo prazer que envio uma cordial saudação aos participantes no Seminário internacional organizado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, sobre o tema: “Desarmamento, desenvolvimento e paz. Perspectivas para um desarmamento integral”, expressando vivo apreço por uma iniciativa tão oportuna. Asseguro a minha proximidade espiritual a Vossa Eminência, Senhor Cardeal, e a quantos nele participam. O tema sobre o qual tencionais refletir é mais atual do que nunca.
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Neste vosso seminário, refletis sobre três elementos interdependentes entre si: o desarmamento, o desenvolvimento e a paz. Efetivamente, não é concebível uma paz autêntica e duradoura, sem o desenvolvimento de todas as pessoas e povos: Paulo VI dizia que “o desenvolvimento é o novo nome da paz” (Ibid., n. 87). Também não é pensável uma redução dos armamentos, se não se eliminar a violência pela raiz, ou seja, se antes o homem não se orientar com determinação em busca da paz, do bem e da justiça. Como todas as formas de mal, a guerra encontra a sua origem no coração do homem (cf. Mt 15, 19; Mc 7, 20-23). Neste sentido, o desarmamento não diz respeito UNICAMENTE aos armamentos dos Estados, mas compromete TODOS os homens, chamados a desarmar o próprio coração e a ser em toda a parte construtores de paz.
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Enquanto houver o risco de uma ofensa, o armamento DOS ESTADOS será necessário por motivos de legítima defesa, um direito que deve ser incluído entre os direitos inalienáveis DOS ESTADOS, uma vez que está ligado também ao dever DOS MESMOS ESTADOS de defender a segurança e a paz dos povos. Todavia, não parece lícito QUALQUER nível de armamento, porque “todos os Estados podem possuir unicamente as armas necessárias para garantir a sua legítima defesa” (Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, O comércio internacional das armas, Cidade do Vaticano, 1994, pág. 13). A falta de respeito por este “princípio de suficiência” leva ao paradoxo através do qual os Estados ameaçam a vida e a paz dos povos que tencionam defender, e os armamentos, de garantia da paz, correm o risco de se tornarem uma trágica preparação da guerra.
Além disso, existe uma relação entre desarmamento e desenvolvimento. Com efeito, os ingentes recursos materiais e humanos empregados para as despesas militares e para os armamentos são desviados dos projetos de desenvolvimento dos povos, especialmente dos mais pobres e necessitados de ajuda. E isto vai contra quanto afirma a própria Carta das Nações Unidas, que empenha a comunidade internacional, e de modo particular os Estados, a “promover o estabelecimento e a manutenção da paz e da segurança internacional com o mínimo dispêndio de recursos humanos e economicos mundiais para os armamentos” (art. 26). Com efeito, em 1964 já Paulo VI pedia aos Estados que reduzissem a despesa militar para os armamentos e, com os recursos assim poupados, criassem um fundo mundial para destinar a projetos de desenvolvimento das pessoas e dos povos mais pobres e necessitados (cf. Mensagem ao mundo, confiada aos jornalistas, 4 de Dezembro de 1964). Porém, o que se está a verificar é que a produção e o comércio das armas estão em contínuo crescimento e começam a assumir um papel-chave na economia mundial. […] Portanto, renovo o apelo a fim de que os Estados reduzam a despesa militar para os armamentos e tomem em séria consideração a ideia de criar um fundo mundial a destinar a projetos de desenvolvimento pacífico dos povos.
Existe igualmente uma estreita relação entre o desenvolvimento e a paz, num dúplice sentido. De fato, podem haver guerras desencadeadas por graves violações dos direitos humanos, pela injustiça e pela miséria, mas não se pode descuidar o risco de verdadeiras e próprias “guerras do bem-estar”, ou seja, causadas pela vontade de ampliar ou conservar o domínio economico em detrimento dos outros. O simples bem-estar material, sem um coerente DESENVOLVIMENTO MORAL e ESPIRITUAL, pode obcecar de tal modo o homem, a ponto de o impelir a matar o próprio irmão (cf. Tg 4, 1 ss.). Hoje, de maneira ainda mais urgente do que no passado, é necessária uma decidida opção da comunidade internacional a favor da paz. No plano financeiro, é preciso esforçar-se a fim de que a economia seja orientada para o serviço da pessoa humana e para a solidariedade e não só para o lucro. No plano jurídico, os ESTADOS são chamados a renovar o seu compromisso, de modo particular no respeito pelos tratados internacionais em vigor sobre o DESARMAMENTO e o CONTROLE de TODOS os tipos de armas, assim como pela ratificação e a consequente entrada em vigor dos instrumentos já adotados, como o Tratado sobre a proibição geral dos testes nucleares, e pelo bom êxito das negociações atualmente em ato, como aquelas sobre a proibição das munições-cacho, sobre o comércio de armas CONVENCIONAIS ou sobre o material físsil. Enfim, são necessários todos os esforços contra a proliferação das armas ligeiras e de PEQUENO calibre, que alimentam as guerras locais e a violência URBANA, matando demasiadas pessoas todos os dias no mundo inteiro.
[…]
Neste sentido, permanece sempre válido o magistério do Beato Papa João XXIII, que indicou com clareza o objetivo de um desarmamento integral, afirmando: “A renúncia aos armamentos para finalidades bélicas, a sua redução efetiva e, com maior razão, a sua eliminação seriam praticamente impossíveis, se ao mesmo tempo não se procedesse a um desarmamento integral, atingindo o próprio espírito e trabalhando sinceramente para dissolver nele a psicose de uma possível guerra” (cf. Carta Encíclica Pacem in terris, 113).
Ao mesmo tempo, não se pode descuidar o EFEITO que os armamentos provocam no estado de espírito e no COMPORTAMENTO do homem. Com efeito, as ARMAS por sua vez TENDEM a ALIMENTAR a violência. Este aspecto foi compreendido de maneira muito profunda por Paulo VI, no Discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1965. Nessa sede, onde também eu me preparo para ir nos próximos dias, ele afirmou: “As armas, sobretudo as terríveis que a ciência moderna vos deu, ainda antes de causarem vítimas e ruínas, geram maus sonhos, alimentam sentimentos negativos, criam pesadelos, desconfianças e resoluções sombrias. Exigem despesas enormes. Detêm os projetos de solidariedade e de trabalho útil. Falseiam a psicologia dos povos” (n. 5). Como já foi reiterado várias vezes pelos meus Predecessores, a paz é um dom de Deus, uma dádiva preciosa que deve ser procurada e conservada também com meios humanos. Por conseguinte, é necessária a contribuição de todos e cada vez mais urgente uma coral difusão da cultura da paz e uma comum educação para a paz, sobretudo das novas gerações, em relação às quais as adultas têm graves responsabilidades. Sublinhar o dever de cada homem de construir a paz não significa, de resto, descuidar a existência de um verdadeiro e próprio direito humano à paz. Trata-se de um direito fundamental e inalienável do qual, aliás, depende o exercício de todos os outros direitos: “O bem da paz é tão grande escrevia Santo Agostinho que, também nos acontecimentos inseridos no porvir deste mundo, habitualmente nada se ouve de mais agradável, nada se deseja de mais atraente e, enfim, nada se alcança de mais belo” (A Cidade de Deus, XIX, 11).
[…]
Somente buscando um humanismo integral e solidário, em cujo contexto também a questão do desarmamento assume uma natureza ética e espiritual, a humanidade poderá caminhar rumo à desejada paz autêntica e duradoura.
Papa Bento XVI
Vaticano, 10 de Abril de 2008.