O Brasil passou ontem dos 600 mil óbitos em decorrência da Covid-19. As centenas de milhares de mortes deixaram mais de 130 mil crianças e adolescentes de até 17 anos no país sem um dos seus cuidadores, como pai, mãe ou outro tutor. Uma geração inteira marcada pelo luto causado pela pandemia do novo coronavírus.
Um estudo publicado na revista científica “Lancet” estima que o país com o maior número de órfãos da pandemia seja o México, com mais de 140 mil entre março de 2020 e abril de 2021. O Brasil é o segundo, com ao menos 130 mil.
O bebê Murilo, de 1 ano e 5 meses, não conheceu a mãe. Raquel Santos de Oliveira tinha 35 anos e estava grávida quando foi infectada pelo coronavírus. Ela teve que ser submetida a uma cesariana de emergência no sétimo mês de gestação e morreu 10 dias depois de dar à luz, deixando deixando quatro filhos: o recém-nascido, os gêmeos Miguel e Gabriel, hoje com 9 anos, e Pedro Henrique, de 13. Todos estão sob os cuidados da avó materna, Roseli Santos de Oliveira, de 56 anos.
— Às vezes eu olho para ele e fico imaginando que ele nunca vai saber o significado da palavra “mãe”. Ele é a cópia dela. É olhar para ele e ver a Raquel pequena. É difícil demais — desabafa a moradora do Complexo da Maré, que encara a dor da perda da filha enquanto tenta ajudar os netos a enfrentar o luto. — O mais velho de vez em quando toca no assunto, lembra dela com alegria. Os gêmeos agora que estão comentando: “Ah, vó, minha mãe quando era viva, a gente fazia isso”. De vez em quando eles ficam parados, eu pergunto o que houve, e eles falam que é saudade.
‘É tipo uma navalha no peito’
Roseli vive hoje com as quatro crianças e o marido, o pescador José Santiago de Oliveira, de 59 anos. Ela teve que deixar o emprego para cuidar dos netos:
— Para mim é mais que um prazer cuidar deles, porque são quatro pedaços dela. O mais difícil mesmo é ficar sem a Raquel, porque se ela estivesse presente, a gente estava trabalhando, cuidando das crianças, como a gente sempre fez. E me peguei sozinha e dentro de casa cuidando deles. O que mais dói é não ter a presença dela mesmo, é tipo uma navalha no peito a todo minuto. Já tem um ano e cinco meses, mas é como se fosse hoje. Isso nunca vai passar. Quando eu estou muito triste, quando ela vem na minha mente, eu penso que tenho que ser forte porque não posso chorar na frente das crianças. E não sou só eu que estou sofrendo. Tem muita gente que perdeu filhos, que perdeu pai e mãe, que não tem quem cuidar e, graças a Deus, meus netos ainda têm a mim. Eu boto na minha cabeça que o sofrimento não é só meu, é de 600 mil pessoas.
Em Madureira, na casa de Michele Musachio Sena Silva Paganotti, de 34 anos, três crianças enfrentam o luto. Pai de Kaiky, de 12 anos, Miguel, de 8, e Arthur, de 3 anos, o motorista de ônibus Robert José de Andrade Paganotti, de 36 anos, morreu de Covid-19 no dia 29 de março deste ano.
— Ainda é bastante complicado, eles eram muito colados com o pai — diz a viúva.
Há cerca de um mês toda a família tem recebido atendimento psicológico on-line, o que tem ajudado muito, segundo Michele:
— O mais velho falou para mim que foi apagando o rosto do pai (da memória), e ele acha que não pode chorar na frente dos irmãos, mas eu falo que tem que colocar para fora, que não é bom guardar. Mas eles acham que não podem ser frágeis perto de mim, por isso a ajuda com o psicoterapeuta veio em bora hora.
Incrível, engraçado, parceiro, que gostava de jogar bola com os filhos e levá-los na escola, que trabalhava de madrugada e os filhos o esperavam acordados. Assim Michele descreve o companheiro.
— É difícil, porque a gente se vê sozinha. A gente vê outras pessoas que são mãe solos e não imagina o quanto é difícil. O parceiro está ali para dividir as tarefas com você, e era o que meu esposo fazia, e quando a gente não tem mais essa pessoa, fica bem perdida — diz, emocionada.
Raimundo Pires dos Santos Filho, de 40 anos, ainda não encontrou palavras para explicar para o filho Antônio Luiz, de apenas 3 anos, a morte prematura da sua esposa, Samantha de Lima Paixão, de 28 anos. A manicure morreu no dia 20 de maio deste ano depois de vinte dias internada em decorrência da Covid. Ela também tinha outra filha de um casamento anterior, Sofia, de 10 anos, que agora vive com a família do pai.
— Quando ele chama por ela, às vezes eu não consigo falar nada, só fico calado. Fico triste, porque não consigo falar — diz ele sobre o filho pequeno.
Raimundo trabalha na rua todos os dias, e tem contado com ajuda da bisavó da criança, avó de sua esposa, que fica com o pequeno em casa, enquanto ele está no trabalho.
Em Jundiaí, em São Paulo, o projeto “Mães que Acolhem”, uma página no Instagram, foi criado para prestar assistência a crianças que perderam um dos pais ou ambos durante a pandemia. O grupo, que conta com advogados, psicólogos e médicos voluntários, oferece apoio psicológico e recebe doação de alimentos e roupas para as famílias. Segundo a advogada Renata Paschoalini, uma das fundadoras do projeto, 69 crianças já foram atendidas desde abril deste ano, todas da região de Jundiaí.
No Rio, um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa propõe a criação do “Programa pequenos órfãos da Covid-19”, com o objetivo de oferecer auxílio financeiro a crianças e adolescentes que perderam mãe, pai ou tutores durante a pandemia. O valor proposto para o benefício é de 200 reais por criança.