Há 10 anos, o estudante Sâmulo Mendonça, de 27, sonha cursar medicina em uma universidade pública. Em 2021.1, ele prestou o vestibular da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e passou em quinto lugar nas vagas destinadas para ações afirmativas, as chamadas cotas. A felicidade por ter seu sonho mais próximo, porém, durou pouco.
A Comissão de Heteroidentificação da Instituição considerou que Sâmulo não é pardo, embora ele já tenha entrado como cotista por este critério em engenharia elétrica, na Universidade Federal do Ceará (UFC). Mesmo após recurso apresentado à comissão, o jovem foi considerado como não cotista no último dia 3 de setembro e, por isso, eliminado do vestibular.
“É muita injustiça, muita mesmo. Só olhando pra mim, é obvio que você me considera uma pessoa parda. Não entendo os critérios que eles utilizaram, porque lá diz que o critério é o fenótipo”, afirmou o estudante.
O colegiado formado por dois professores da Uece e um membro externo da Universidade considerou que ele não era pardo por não ter características fenotípicas. O fenótipo é um conjunto de características visíveis do genótipo de um ser humano. O genótipo é o conjunto de genes que, neste caso, indicam a raça.
O edital do certame determina que sejam analisados como características fenotípicas: cor da pele, textura do cabelo e formato do rosto, sobretudo do nariz e dos lábios.
Segundo o edital, essas características, “combinadas ou não, permitirão validar ou invalidar a condição étnico-racial afirmada pelo candidato autodeclarado negro”. A comissão afirmou que Sâmulo não tem cor da pele correspondente, nem textura dos cabelos e nem fisionomia de uma pessoa parda.
Em nota, a Uece disse que não tem “conhecimento de qualquer reprovação injusta” e que “todas as solicitações recursais foram atendidas e os candidatos recorrentes reavaliados por nova comissão de heteroidentificação”. (Leia a nota na íntegra abaixo).
Segundo a Universidade, a comissão “busca coibir eventuais fraudes no ingresso de estudantes nos cursos de graduação por meio de cotas raciais”. Havia 12 vagas disponíveis para pardos, uma para negro e sete para pessoas com vulnerabilidade financeira no sistema de cotas.
‘Seleção racial’
Por causa da negativa, Sâmulo Mendonça já recebeu contatos de advogados, os quais estão atuando na causa por conta própria, sem pagamento de honorários. Uma ação foi impetrada na Justiça para garantir a vaga do estudante no curso de medicina.
“Quando saiu o resultado da banca, me surpreendi porque em tudo o que eu fiz me declarei uma pessoa parda. Já tinha estudado na UFC em engenharia elétrica como pessoa parda e nunca tinha tido nenhum problema”, afirma o estudante.
Conforme Sâmulo, o curso de medicina era entendido pela família como uma forma de sair de uma condição economicamente frágil. Ele é filho de uma técnica de enfermagem e de um caminhoneiro e mora no Bairro Pirambu, um dos maiores conglomerados urbanos na periferia de Fortaleza.
“Meus pais estão extremamente tristes, assim como eu. Diariamente estou tentando ter forças para poder voltar ao ritmo de estudo e tentar esquecer um pouco, deixar que a Justiça resolva”, diz o jovem.
‘Do sonho ao pesadelo’, diz outro jovem
Assim como Sâmulo, o jovem João Lucas, de 20 anos, afirma não entender os critérios para que ele também fosse eliminado do vestibular. Natural do município de Morada Nova, ele passou em medicina nas vagas para pessoas pardas, mas também foi considerado não cotista pela Comissão de Heteroidentificação.
“Fui do sonho ao pesadelo”, diz o estudante, que saiu da cidade em 2019 para realizar o sonho de ser médico. “Toda vida me autodeclarei pardo, sempre me achei pardo. Minha família toda é negra. Quando saiu o edital, olhei isso e a questão do tom da pele. Nunca esperei passar isso pela banca”.
Segundo João Lucas, todos os critérios também foram negados, da cor à fisionomia. Para reverter a ação, o jovem fez uma vaquinha na família para conseguir a fim de abrir uma ação na Justiça. Agora, ele aguarda a decisão.
Junto a Sâmulo e João Lucas há cerca de 40 estudantes questionando as decisões da Comissão de Heteroidentificação da Uece. Eles afirmam que são pardos e julgam não entender o porquê das suas eliminações.
Leia a nota pública sobre a Comissão de Heteroidentificação da Uece:
A Universidade Estadual do Ceará (UECE) visa, em primeiro lugar, garantir que grupos historicamente discriminados e com pouco acesso ao ensino superior ampliem o seu ingresso no ensino público, gratuito e de qualidade, tomando como princípio o entendimento já exarado pelo Supremo Tribunal Federal via análise fenotípica (mesma análise considerada na Resolução Nº 1657/CONSU). E, em segundo lugar, a instalação das comissões de heteroidentificação na UECE busca coibir eventuais fraudes no ingresso de estudantes nos cursos de graduação por meio de cotas raciais. Todo esse processo é regulado pela Resolução Nº 1657/CONSU, de 1º de abril de 2021.
Assim, conforme se depreende da normativa mencionada todos os candidatos não só ao vestibular, mas a qualquer seleção ou concurso onde sejam ofertadas vagas para cotas étnico-raciais deverão passar pelas comissões de heteroidentificação constituídas para esse fim, conforme Portaria Normativa 04/2018 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/Secretaria de Gestão de Pessoas – MPOG.
Essas comissões são constituídas por pessoas capacitadas de acordo com artigo Art. 6º “O procedimento de heteroidentificação será realizado por comissão criada especificamente para este fim.”
Em seu § 1º A comissão de heteroidentificação será constituída por cidadãos: III ‐ que tenham participado de oficina sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo com base em conteúdo disponibilizado pelo órgão responsável pela promoção da igualdade étnica previsto no § 1º do art. 49 da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010; e IV ‐ preferencialmente experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo” da referida Portaria Normativa.
O artigo 9º informa que a Comissão de Heteroidentificação da UECE, nos processos de verificação e de validação de que trata esta Resolução, considerará:
I. o teor da autodeclaração assinada e entregue pelo candidato por ocasião de sua inscrição;
II. a análise de documentos complementares solicitados pela CHET/UECE;
III. as características fenotípicas do candidato, observadas durante procedimentos conduzidos e registrados pela Comissão de Heteroidentificação.
1º. O critério de ancestralidade/ascendência não será considerado em nenhuma das situações expressas nos incisos I, II e III deste artigo.
A comissão avaliadora foi composta por 3 integrantes, sendo 2 docentes da UECE e 1 representante da comunidade externa vinculados a outras instituições de ensino superior e/ou a organizações sociais. Todos os membros avaliadores participaram de treinamento, além de já serem estudiosos da área.
Por fim, todos os candidatos submetidos à Comissão que tiveram classificação como “Não cotista” tiveram prazo para interposição de recurso, possibilitando a esses candidatos uma nova avaliação. Não temos conhecimento de qualquer reprovação injusta. No caso específico do concurso vestibular 2021.1, todas as solicitações recursais foram atendidas e os candidatos recorrentes reavaliados por nova comissão de heteroidentificação.