SÃO PAULO, SP, E NATAL, RN (FOLHAPRESS) — Por videochamada, Fazal Ahmed conversa com um amigo no Afeganistão, que mostra dois buracos de bala na parede e os pertences da família amarrados com cordas, preparados para uma possível fuga. Também no celular, o irmão de Ahmed, Rabi, mostra uma foto da esposa sorrindo, com os cabelos cobertos por um lenço estampado, e diz que teme por ela e pelo filho, que continuam em Cabul.
Ali do lado, um amigo da família, Ahmed Jaber, conta que era levado com a turma de escola, quando criança, para assistir a execuções em praça pública. E o engenheiro Zabiullah diz que está apreensivo especialmente pela irmã, que é duplamente alvo potencial do Talibã por ser jornalista e mulher.
No Canindé, bairro da zona norte de São Paulo, refugiados afegãos lembram suas histórias e temem por parentes e amigos que permanecem no país, agora sob o regime violento do grupo fundamentalista islâmico. Eles estão no açougue da família Fazal, que vende carne halal (processada de acordo com a tradição islâmica).
A maior preocupação hoje é com a mulher e o filho de Rabi, 27. Ele diz que tentou três vezes trazê-los para o Brasil, mas não conseguiu os vistos. “Já pedi muito, fui ao Itamaraty, nas organizações. Ninguém me escuta”, diz ele, que praticamente só conhece o filho por foto e vídeo -saiu do país quando a criança tinha 10 dias.
Ahmed, 28, foi o primeiro da família a chegar ao Brasil, em 2012. Seis anos depois, vieram a esposa, os filhos, os pais e o irmão.
O celular dele não para de apitar, com vídeos de violências praticadas pelos talibãs, enviados por amigos. A maioria tem a data marcada na gravação, uma tentativa de provar que acontecem agora, e não 20 anos atrás, quando o grupo também dominava o país.
“Eles estão cortando a mão das pessoas por causa de coisas bem pequenas. Ontem fecharam uma escola de meninas. Entram na casa das pessoas sem autorização, roubam tudo. Se veem uma menina bonita, falam: ‘Essa aqui é minha, vou casar com ela’. Isso está acontecendo agora. Em Cabul”, diz, exasperado.
Segundo ele, há toque de recolher após as 21h. Em casa e com medo, as mulheres pegaram burcas antigas de família para usá-las novamente. Os homens esperam a barba crescer para se arriscarem a sair à rua – os talibãs não permitem barba aparada.
Um amigo dele que mora em Cabul liga por chamada de vídeo. É noite na capital afegã, mas Atif conta que não vai dormir, pois está montando guarda com um revólver que ganhou de um amigo policial. Ele diz que nunca manipulou uma arma antes, mas precisa dela para proteger a família.
No dia anterior, os talibãs arrombaram a porta da casa do vizinho e roubaram tudo o que havia dentro, além de espancarem homens e mulheres, relata Atif, em inglês. Diz que gravou um vídeo da cena e o envia. A brutalidade é chocante.
Mostra, então, dois buracos de bala na parede. “Eles entraram, bateram no meu irmão. Não viram dinheiro para roubar, levaram o celular dele e disseram: ‘Amanhã nós vamos voltar.'”
A família instalou oito câmeras do lado de fora, mas seis foram quebradas, ele conta, mostrando a tela com a imagem das duas que sobraram. Só resta comida para cinco dias, e eles acrescentaram água à sopa para fazê-la render, já que não podem ir ao mercado – a maioria está de portas fechadas, de qualquer forma.
O avô de Atif está com um sangramento nos pés e eles estão em dúvida se o levam ao hospital porque não sabem se estará tomado por talibãs ou se haverá médicos trabalhando. Uma amiga da família, no fim da gravidez, provavelmente terá que ter o bebê em casa pelo mesmo motivo.
Os talibãs também se apropriaram dos bancos, afirma, e ninguém consegue tirar o dinheiro que tinha em conta – no dia anterior à tomada da cidade, longas filas eram vistas nos caixas eletrônicos, na tentativa de sacar tudo o que fosse possível.
Atif conta que pela manhã saiu para fumar na porta de casa e levou um tapa no rosto. “Um talibã passou de carro e disse: ‘Nós somos governo agora. E no nosso governo você não pode fumar.'” Mostra, em seguida, uma pilha de colchões amarrados. “Se vier alguém, já está tudo na mão deles para correr”, explica Ahmed.
O problema é para onde. Afegãos precisam de visto para ir para praticamente qualquer lugar do mundo, e o aeroporto está cercado -imagens de pessoas desesperadas, pendurando-se em aviões, tornaram-se um símbolo do desespero para fugir do novo regime.
“Está todo mundo preso lá, esperando para morrer”, diz Ahmed. “Eles estão tentando com a gente, com amigos da Inglaterra, dos EUA. Querem ir para qualquer país, só precisam sair de lá.”
Usando uma vestimenta tradicional da etnia pashtun, majoritária no Afeganistão, o pai de Ahmed e Rabi conta que no outro regime talibã, entre 1996 e 2001, fugiu com a família para o Paquistão. Os talibãs também são pashtun, e Fazal Rahim sente necessidade de explicar. “Mas não sou talibã, viu, a gente não concorda com eles.”
São poucos os afegãos que vivem no Brasil: no total, 162 reconhecidos como refugiados e 49 aguardando decisão sobre seu caso.
Um deles é Ahmed Jaber, 28, que conta à reportagem a “história pior da sua vida”: “Eu estudava e eles [os talibãs] iam na nossa escola e levavam todo mundo para ver as mortes na rua”, diz, referindo-se às execuções públicas.
Jaber afirma que foi tradutor dos militares americanos por três meses, mas não conseguiu visto para migrar para os EUA porque o documento só era concedido a quem prestasse serviços por ao menos dois anos. Foi, então, para Dubai e depois para o Brasil, em 2014. Ainda não conseguiu trazer a esposa e o filho para perto.
Zabiullah, 30, chegou no mesmo ano. Engenheiro de telecomunicações, agora vende roupas na feirinha da madrugada do Brás, em São Paulo. A mãe dele era professora e não pode mais trabalhar. A irmã, repórter de TV e mãe de dois filhos, foi levada pela família para os arredores da cidade. “Quem trabalha com mídia fazia reportagens falando coisas ruins do Talibã e agora sofre a maldade deles”, diz.
Ele tem esperança de que o Brasil simplifique os requisitos para a reunião familiar. “Agora está tudo fechado lá, fica difícil arrumar todos os documentos.”
Na região metropolitana de Natal, o afegão Abdul Fattah Rabiei, 35, teme que se repita com um primo e as filhas o que aconteceu com sua família no outro regime talibã. Fattah viu o pai, funcionário do governo anterior, ser preso e torturado pelos extremistas. A mãe, professora, e a irmã, então estudante, foram proibidas de frequentar a escola.
Ele tinha 13 anos quando o grupo chegou ao poder na cidade em que morava, Mazar-i-Sharif.
A família procurou asilo no Irã, mas Fattah continuou no Afeganistão. Até 2001, ele estudou nas escolas dominadas pela doutrina do Talibã e só anos depois, quando foi fazer faculdade na Turquia, teve consciência da opressão dos extremistas.
“Não sabíamos de nada, porque havia um controle muito forte. Homens podiam frequentar as escolas, mas não pensar livremente.”Apesar d
a promessa de paz anunciada pelo porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, Fattah não confia que não vai haver violência. “Eles não mudaram, como querem nos fazer acreditar. Os líderes são os mesmos, eles são os mesmos.”
Na Turquia, Fattah foi mediador cultural em missões humanitárias e conheceu a esposa, a brasileira Gedilana Rabiei, que atuava na ONG Médicos Sem Fronteiras. Em 2018, quando nasceu o filho do casal, eles se mudaram para o Brasil.
Fattah não consegue dormir desde que o Talibã tomou o poder. “Penso nos meus familiares, no povo do meu país, nas mortes que podem acontecer. Os afegãos não merecem o Talibã. O povo não os apoia”, afirma.
Para ele, está difícil manter a esperança no lugar onde nasceu. “Queremos paz, queremos um país próspero, que não tenha pobreza, que não tenha violência. Mas às vezes parece impossível e isso me entristece muito.”