“Meus pais eram agricultores e tiveram 18 filhos, nove homens e nove mulheres. Nasci em fevereiro de 1967 na zona rural de Caruaru, em Pernambuco, e comecei a trabalhar ainda muito menina. Aos seis anos já estava arrancando mato e roçando a terra. Meu pai era um homem rude, severo e de poucas palavras. Ele nunca nos tratou com carinho.
Quando eu tinha nove anos, fomos a um roçado perto de casa. No caminho meu pai me arrastou para o meio do mato, amarrou minha boca com sua camisa e tentou ser ‘dono de mim’. Dei uma pezada no nariz dele, tentando me defender. Mas ele puxou uma faca para me sangrar. A faca pegou no meu pescoço e no meu joelho. Ele tentou de novo, mas não conseguiu o que queria. Ao chegar em casa contei tudo para a minha mãe, mas, além de não acreditar em mim, ela ainda me deu uma coça. Fiquei sem almoço.
Naquela noite minha mãe foi até o meu quarto me buscar e me levou para ele. Ela me colocou na cama deles, tapou minha boca com o lençol e segurou minhas pernas para ele pular em cima de mim. Dei um grito e não vi mais nada. Apavorada, fiquei ali imóvel. Meu pai abusou de mim.
No dia seguinte não consegui andar. Falei para minha mãe que o que tinham feito era pecado, que era horrível. ‘Não é pecado. Filha tem que ser mulher do pai mesmo’, ela disse. O que mais me dói até hoje é que fui abusada pelo meu pai com o consentimento da minha mãe. Ela não fazia nada para me defender e ainda o apoiava. Depois daquele dia, três vezes por semana ele abusava de mim. Sempre na cama deles.
Com 15 anos, engravidei pela primeira vez. O bebê nasceu morto. Ao longo da vida engravidei 12 vezes do meu pai, mas somente cinco filhos sobreviveram. Mesmo grávida eu sofria abusos e todo tipo de agressão. Meus filhos-irmãos nasciam e logo morriam. As duas meninas e três meninos que vingavam foram criados ali em meio aquele caos. Nunca algum vizinho, familiares ou amigos interviram. Muito pelo contrário, todos sabiam, mas fingiam que não. Nunca pude ir à escola, a uma consulta médica ou à igreja. Nunca tive amigas ou namorei. Não tive vida social e comunitária, nem convivência com outras pessoas. Vivi 38 anos em total cárcere privado.
Tentei denunciar meu pai diversas vezes e nunca fui ouvida. Certa vez, fui à delegacia de Caruaru e ainda levei um tapa na cara do delegado de plantão, que me mandou voltar pra casa. Eu já tinha quase 30 anos e procurava meus direitos há tempo. Soube depois que meu pai, que criava ovelhas, deu um carneiro para o delegado fazer um churrasco e, assim, o caso se encerrou. Uma outra vez, ouvi o delegado dizer que meu pai era uma boa pessoa e eu não deveria dar queixa dele. Não sabia mais para quem pedir ajuda. Parecia que todos achavam normal o que eu vivia. Minha mãe ainda me condenava, dizia que eu estava manchando o nome e a honra dele e da minha família.
Um dia, minha irmã mais nova falou que estava interessada em um rapaz da região. Nosso pai quis pegá-la à força, disse que já tinha um ‘touro’ dentro de casa e não era para ninguém ali andar atrás de macho fora de casa. Mandei minha mãe correr com minha irmã para longe de casa e ele foi atrás delas com uma faca nas mãos. Depois disso, minha mãe resolveu não ficar mais com ele. Foram todas embora para a casa do meu avô em Caruaru. Ela e as minhas oito irmãs. Só ficamos eu e meu pai em casa. Eu tive que ficar. Estava grávida e já tinha outros dois filhos pequenos, tive medo de não nos aceitarem na casa da minha família. Mainha saiu de casa corrida com as minhas irmãs. Meus irmãos homens, nessa época, já eram todos falecidos. Eu já estava com 21 anos e meu pai ainda me espancava muito. Sem mais aguentar aquela vida, tentei me matar várias vezes. Botei até corda no meu pescoço. Mas nunca dava certo.
Quando minha filha mais velha completou 11 anos, meu pai disse que ia ser ‘dono dela’ e se eu tentasse impedir me mataria. Não me aguentei. Jurei que se tocasse na minha filha ele iria morrer. Minha mãe aceitou, mas eu não. Jamais poderia suportar ver filha minha passar por tudo que passei. Depois que lhe ameacei, ele me bateu por três dias seguidos, me deu um murro no olho esquerdo que ficou roxo por vários dias. Meu ouvido também foi esmurrado e perdi a audição. Ele estourou meu tímpano.
No dia seguinte, meu pai amolou uma faca e foi vender fubá e farinha de milho na cidade. Antes de sair, me disse: ‘Rapariga safada, quando eu chegar, se você não fizer o acordo com a menina (minha filha), vai ver o começo e não o fim’. Quando ele saiu, corri para a casa da minha tia que morava na redondeza. Mostrei a ela meu corpo todo lanhado. Foi quando decidi procurar por dois homens intrigados dele e os paguei para matá-lo. Já não aguentava mais tanto sofrimento. Não queria ver a minha filha passar pelo mesmo horror que passei. Peguei o único dinheiro que eu tinha guardado, fui para Caruaru e paguei a eles mil reais, sem um pingo de arrependimento. Tinha juntado esse valor em um ano de trabalho na feira com a venda de fubá.
Quando meu pai voltava pra casa à tarde, após o trabalho no roçado, os dois rapazes já vieram o seguindo. No dia 15 de novembro de 2005, às 13h30, meu pai foi assassinado com a peixeira que ele mesmo já tinha me ameaçado de morte. Minha filha, que era filha dele, eu consegui salvar de suas garras. Quem é pai e mãe de verdade sabe, dói demais no coração ver um filho sofrer. Ter que levar sua própria filha para a cama, abrir a intimidade dela, como minha mãe fez comigo, e colocar o pai em cima da filha? Isso é realmente abominável.
No cemitério já tinha um carro de polícia me esperando. Assim que acabou o enterro fui presa. Minha mãe e uma das minhas irmãs me entregaram para a polícia. Meus cinco filhos ficaram com a minha tia, irmã do meu pai, uma senhora de 81 anos. Eles sofreram muito com a minha prisão. No tempo que estive em reclusão trabalhei no roçado, como servente de pedreiro, lavei carro e moto dos policiais, fiz plantio de verduras. Todo serviço que tinha lá na prisão eu pegava para diminuir minha pena e poder sair mais rápido para tomar conta de meus filhos. Minha maior preocupação sempre foi com eles.
Em 2006, com o advento da Lei Maria da Penha, passei a pagar minha pena em liberdade provisória e voltei a viver com minhas crianças, após um ano presa. Trabalhei na roça e pedia ajuda aos parentes para sustentá-los. Passamos muita fome. Muitas pessoas ainda me julgavam e não queriam me dar trabalho por ser uma ex-presidiária. Em março de 2011 fui acolhida pelo Centro de Referência da Mulher Maria Bonita, de Caruaru, que acolhe mulheres em situação de violência. Em seguida, passei a ser usuária da Política Pública da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da cidade de Caruaru e a coordenadora me levou a vários encontros feministas. Fui para a Bahia, Sergipe e para outros lugares do Brasil sempre dando o meu depoimento e testemunho de vida a outras mulheres.
No dia 25 de agosto de 2011 fui julgada e absolvida por unanimidade na cidade de Recife. A defesa alegou a violência de gênero prevista pela Lei Maria da Penha, informando que agi por legítima defesa e de terceiros. Por eu ter vivido por 38 anos em cárcere privado, o advogado também alegou a ausência do Estado na proteção dos meus direitos e dos meus filhos. Por fim, afirmou que eu ter ‘encomendado à morte de meu próprio pai’ era a única alternativa de poder viver e garantir a vida dos meus cinco filhos. Depois da absolvição pude, enfim, refazer a minha vida. Finalmente eu estava livre!
Em 2013 passei a receber um auxílio financeiro de mil reais do município de Caruaru. A partir de 2017, comecei a participar do Grupo Reflexivo, uma nova metodologia aplicada pela coordenadora do Centro de Referência da Mulher Maria Bonita. Aprendi sobre formação sociopolítica e também sobre violência de gênero. Notava que, a cada encontro, eu ia me percebendo num processo intenso de protagonismo e me empoderando cada vez mais no meu lugar de fala. Passei então a participar de muitas palestras como convidada para trazer as minhas experiências e minha história de vida.
Hoje estou com 54 anos e tenho sérios problemas de saúde. Tenho problemas de coração, nos ossos e nos rins. Não enxergo do olho esquerdo e nem escuto do ouvido esquerdo de tanto que apanhei a vida toda do meu pai. Um dos meus filhos sofre de epilepsia e minha filha mais velha nasceu com um problema psicológico. Atualmente, meus filhos tem 27, 26, 25, 23 e 21 anos. Somente os rapazes moram comigo, as duas moças já se casaram e me deram a maior alegria da minha vida, que são minhas três netinhas lindas, os amores da vida da vovó. Nunca me arrependi de ter tido meus filhos. Eles são a minha maior riqueza.
Mesmo diante do meu esforço e luta, não posso negar que vivo num sufoco nesse cenário da pandemia, onde sabemos que muitas mulheres estão assim como eu, passando por uma situação difícil e delicada. Não posso mais trabalhar devido ao agravamento dos meus problemas de saúde. Lutei e luto até hoje, passei fome e ainda passo por muita dificuldade para sustentar a casa e meus filhos. Mesmo assim, não desisto. Mesmo à revelia do Estado e enfrentando todo tipo de adversidades, nunca desisti da vida. Desejo imensamente que cada mulher erga a sua cabeça e siga em frente, que lute para vencer e não dê o braço a torcer. Mesmo diante de todas as dificuldades, não se intimide. Procure sempre os seus direitos e sua felicidade, em primeiro lugar.”