SÃO PAULO – Em meio ao colapso do sistema de saúde por causa da pandemia da Covid-19, a maior parte dos governos estaduais têm evitado tornar públicos os protocolos para atendimento a pacientes com a doença que buscam uma vaga de UTI. No fim de março, 6,3 mil pessoas estavam na fila no país, segundo balanço do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
O esgotamento do sistema vem obrigando os gestores da saúde a decidirem sobre o acesso às poucas vagas disponíveis. Especialistas e Ministério Público cobram impessoalidade e transparência em relação aos critérios adotados em meio ao caos. Nesta sexta, inclusive, a partir das 10h30, a Associação Médica Brasileira anunciará recomendações para a triagem de pacientes em UTIs.
Das 27 unidades de federação consultadas semana passada pelo GLOBO sobre o tema, oito relataram o protocolo que está sendo adotado. Deles, apenas Santa Catarina e Rio Grande do Norte reconhecem a adoção do ação específica e detalhada com prioridades para atendimento, em meio ao esgotamento de recursos.
Os dois estados seguem uma recomendação que propõe a adoção de diferentes escalas conjugadas a um modelo de pontuação para verificar quem são os pacientes com mais chance de viver e com autonomia. O documento traz a chancela de quatro entidades médicas nacionais: a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib), a Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede) e a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e baseia-se em observação clínica e de performance do paciente.
“Entendemos que os médicos não devem arcar sozinhos com o peso de decisões emocionalmente tão difíceis e que a população deva ter que arcar com o trauma de testemunhar mortes que poderiam ser evitadas com a ampliação de serviços”, escreveram os formuladores da recomendação, para quem processos de alocação de recursos em esgotamento não podem ocorrer “em segredo, sem registro apropriado e de maneira subjetiva e inconsistente” .
O Espírito Santo informou que prepara documento semelhante ao dos dois estados e promete divulgá-lo nos próximos dias.
— Estamos padronizando para toda a rede pública e de certa maneira poderá ser adotado também pela rede privada e filantrópica — disse o secretário de saúde estadual, Nésio Fernandes.
A secretaria de Saúde da Bahia informou buscar atendimento adequado ao paciente em área próxima ao primeiro atendimento e, não havendo vaga, o escopo de busca é ampliado até o estado inteiro. O governo informou seguir o protocolo de Manchester – procedimento simples que prevê cinco níveis de urgência, medidos por cores. Modelo semelhante é adotado pelo Rio Grande do Sul.
Já a secretaria de Saúde de São Paulo informou manter uma central para mediar os serviços de “origem e destino” de pacientes, trabalhando com critérios de urgência definidos pela equipe médica que solicitou a transferência. “Cada solicitação é avaliada individualmente por médicos reguladores, sendo crucial a atualização do quadro clínico para o encaminhamento adequado”, escreveu.
O GLOBO perguntou que procedimento os três estados adotam quando há dois pedidos com o mesmo grau de gravidade e urgência, e apenas uma vaga. Não houve resposta.
O governo do Rio informou ter regulado em dezembro o protocolo de acesso do paciente com suspeita de Covid-19 à vaga de UTI. O documento cita os exames necessários para atestar a Covid-19 e como proceder em caso de falta deles, mas não menciona critérios de ação em caso de esgotamento de recursos.
O Mato Grosso informou que considera-se “posição na fila e condição clínica”. Em Minas, o governo estadual diz que a demanda por leitos “é um processo dinâmico, que considera critérios clínicos e de gravidade do paciente”.
— Temos mantido um diálogo com o estado e cobrado transparência. Quais são os critérios de prioridade? Os critérios bioéticos de assistência precisam estar muito claros – cobra o coordenador do Centro de Apoio Operacional da Saúde do Ministério Público mineiro, Luciano Moreira de Oliveira, para quem ainda é preciso formular uma política que diminua o risco de haver fura-filas de leitos, seja por razões econômicas ou pessoais.
O presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), Maurício Ventura, lembra que a idade é um critério muito ruim para escolha sobre quem se beneficiará de uma vaga de UTI. Não à toa, ele sequer é mencionado nas recomendações assinadas pela entidade. Ele defende um olhar multidisciplinar para o momento de decidir.
— Temos que entender que a UTI é um remédio amargo, que pode fazer muito bem em certas situações, e em outras, não. O desafio é saber que paciente, de fato, poderá se beneficiar daquilo — afirma Ventura.
Como exemplo, ele diz que um idoso é indicado para a unidade intensiva quando verifica-se que ele tem condições de se reintegrar depois daquele período. Pacientes que vivem acamados, por exemplo, têm menos chance em caso de esgotamento de recursos. Garantir prontuário com dados atualizados e informações sobre antecedentes de doenças também são medidas que ajudam na avaliação objetiva dos casos, diz Ventura:
— Indicar tratamento fora da UTI não é desistir de alguém. Algumas vezes, é o que vai salvá-lo. O que importa é a acurácia no diagnóstico e estabelecer o melhor plano de cuidados para o paciente, para garantir que ele se beneficie, de fato, dos recursos disponíveis.