Ruas cheias, todos sem máscara e nenhuma preocupação. Este é o atual cenário da Nova Zelândia, o país que melhor lidou com a pandemia da covid-19, segundo uma pesquisa global realizada pela consultoria britânica Brand Finance. De março do ano passado até esta terça-feira (23), a ilha de cinco milhões de habitantes registrou 2.350 casos e 26 mortes em decorrência da doença.
O tamanho da população da Nova Zelândia contribuiu para o sucesso do país no combate à pandemia do novo coronavírus— mas este não foi o único fator e nem o principal, segundo as brasileiras Erika Brabyn, 46 anos, que mora em Auckland, a cidade mais populosa da Nova Zelândia, e Isabelle Gasparini, 33 anos, residente em Opua, um pequeno vilarejo de 1.137 habitantes na chamada Baía das Ilhas.
“No primeiro lockdown, a Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, pediu para que nos mantivéssemos unidos e todos abraçaram a causa”, afirma Erika. “Não se ouvia carro passando, voltou-se a ouvir o barulho dos pássaros, aquela coisa da natureza. As pessoas até saíam para fazer exercício físico, mas era uma coisa bem controlada.”
Erika mora em Auckland, a cidade mais populosa da Nova Zelândia
ARQUIVO PESSOAL
“O consenso é de que o governo fez tudo que podia para proteger a população”, diz Isabelle. “Além disso, as pessoas aqui têm um senso de coletividade muito grande. Para se ter uma ideia, um dia eu estava na marina [centro portuário de recreação], onde trabalho atualmente, e um homem, dono de um dos barcos, acenou para mim por detrás da porta. Eu disse ‘pode entrar’, mas ele disse que não podia. Uma menina da escola da filha dele estava com covid e ele tinha vindo avisar que não havia encostado em nada e que iria passar uma semana isolado em seu barco.”
Em 24 de março de 2020, foi decretado o primeiro lockdown, que durou dois meses e valeu para todo o país. Cinco meses depois, os moradores de Auckland enfrentaram um segundo confinamento, desta vez de duas semanas, após o governo ter identificado 29 casos de transmissão local, quase todos na cidade.
Segundo as brasileiras, o primeiro lockdown veio como uma surpresa e deixou todos em estado de choque. Durante a imposição da medida, considerada a mais rígida para conter o avanço de doenças contagiosas, os cidadãos ficam impedidos de cruzar fronteiras e circular em áreas públicas sem que haja um motivo emergencial, como o reabastecimento de alimentos, remédios e outros itens essenciais.
“O que passou pela nossa cabeça foi ‘comida, comida, comida'”, afirma Erika. “Eu me abasteci ao máximo que pude e fiquei por volta de duas semanas sem sair de casa. Foi aquele caos. Nós íamos ao mercado e víamos as pessoas brigando por leite em pó, água sanitária e outros mantimentos básicos. O vírus trouxe à tona ações e reações que não esperávamos ver, foi algo que realmente me chocou. Mas é a lei da sobrevivência, ‘né’.”
“Foi um susto, porque em um dia nós estávamos ouvindo falar desse vírus lá na China e dois dias depois já estavam falando sobre medidas sanitárias e desinfetar os ambientes”, diz Isabelle. “Uma vez decretado o lockdown, você tinha que ficar na sua própria ‘bolha’. Como moro sozinha, decidi que iria passar o lockdown com uns amigos que moram em outra ilha. Tive 48 horas para empacotar tudo, dirigir doze horas, pegar uma balsa e chegar lá.”
Durante dois meses, a rotina de Isabelle consistiu basicamente em fazer caminhadas, assistir filmes, cozinhar e passar bons momentos com os colegas de confinamento. “Contando comigo, tinham seis pessoas na minha ‘bolha’: um amigo meu, a mãe e a irmã dele e um casal de alemães que estavam visitando e acabaram passando todo o lockdown lá. No final das contas, viramos uma grande família e foi muito gostoso.”
Isabelle passou o lockdown isolada com amigos em uma ilha
ARQUIVO PESSOAL
Já Erika ficou confinada em sua casa em Auckland com o marido e os dois filhos, de 9 e 17 anos. No início, a quebra da rotina causou estranheza, mas eles logo encontraram um jeito de contornar a situação.
“Em um primeiro momento, nós tentamos fazer a nossa rotina normal, como se não estivéssemos em lockdown — hora para isso, hora para aquilo. Depois, vimos que não tínhamos condições de continuar daquele jeito e decidimos ficar ‘livres’. Eu dizia aos meus filhos: ‘se você quiser tomar banho mais tarde você toma, se você quiser estudar mais tarde você estuda, se você quiser comer a qualquer hora, você come'”, conta a brasileira.
“Mais tarde, para passar o tempo, começamos a investir em pequenos projetos dentro de casa, como arrumar a garagem e cuidar do jardim — coisas que já estávamos precisando fazer, mas não tínhamos tempo porque um final de semana não era o suficiente. Eu e meus filhos fizemos um teamwork [trabalho em equipe] mesmo e estávamos sempre juntos”, completa.
Durante os dois meses de lockdown, Erika e Isabelle contaram única e exclusivamente com um auxílio do governo. Erika, dona de uma loja de artigos para casa, se viu obrigada a suspender as atividades de seu negócio, e Isabelle, que trabalhava levando turistas de outros países para passear de barco, perdeu o emprego devido ao fechamento das fronteiras.
Atualmente, a vida na Nova Zelândia já voltou ao normal — isto é, estabelecimentos não essenciais voltaram a funcionar e as pessoas podem circular livremente nas ruas sem máscara, exceto dentro de transportes públicos. Apesar disso, é claro que os efeitos da crise ainda permanecem.
Segundo Erika, muitas empresas faliram, e ela mesma chegou a pensar que seria obrigada a fechar as portas de sua loja. “A minha sorte foi que pelo fato de as pessoas terem passado muito tempo confinadas, elas passaram a observar mais atentamente suas casas e, após o lockdown, houve uma explosão nas vendas desse setor.”
“Além disso, em agosto, quando houve o segundo confinamento em Auckland, decidi que começaria a usar meus tecidos para produzir máscaras de proteção facial. Em três semanas, cheguei a vender duas mil máscaras”, completa.
Apesar de a vida na Nova Zelândia já ter voltado à normalidade, algumas medidas ainda estão em vigor no país para evitar um novo surto de covid na ilha. Uma delas, talvez a mais inusitada de todas para os brasileiros é o aplicativo “NZ Covid Tracer”, uma ferramenta de rastreamento lançada pelo Ministério da Saúde em 20 de maio do ano passado.
Cada usuário tem um QR code, como se fosse um código de identificação, que precisa ser escaneado tanto na entrada quanto na saída de qualquer estabelecimento. Desta forma, o governo consegue ter um controle de quem passou por determinado lugar com precisão de dia e horário.
“Muita gente não gosta porque acha que o governo está usando isso com segundas intenções, mas posso dizer que pelo menos 90% da população escaneia. Aqueles que não gostam de escanear têm a opção ainda de deixar o bluetooh ligado, o que também possibilita o rastreamento”, afirma Erika.
“Todas as pessoas que entram na minha loja eu peço para escanear. Aquela pessoa comprando ou não, eu sei que ela esteve no meu estabelecimento naquele dia e horário. Se acontecer de eu ou alguma pessoa que passou pela minha loja ser diagnosticada com covid, eu serei comunicada e terei que ficar em quarentena, bem como a outra pessoa”, completa.
A Nova Zelândia deu início à campanha de vacinação no último sábado (20). Em um primeiro momento, o país imunizará os 12 mil trabalhadores da linha de frente das fronteiras, o que deve levar pelo menos algumas semanas. Tanto Erika quando Isabelle pretendem se vacinar e estão aguardando ansiosamente por este momento.
Atualmente, as fronteiras estão fechadas e devem pernamenecer assim até que toda a população esteja imunizada. Com isso, apenas cidadãos e residentes podem entrar na ilha, com a condição de desembolsarem NZ$ 3.100 (R$ 11 mil) e se isolarem em um hotel por 14 dias — tempo máximo que o novo coronavírus demora para se manifestar no organismo.
Mesmo após imunizadas, no entanto, Erika e Isabelle garantem que ainda deve levar algum tempo para que venham visitar a família no Brasil. “Eu e meu irmão, que também mora na Nova Zelândia, estávamos com passagem marcada para o dia 8 de abril do ano passado”, diz Erika. “Felizmente, o lockdown foi decretado antes e conseguimos reaver o dinheiro. Agora não sei quando poderemos ir ao Brasil. Pelo que tenho acompanhado, a vacinação aí está caminhando a passos lentos, e minha família certamente não será imunizada tão logo.”
Isabelle partilha da mesma preocupação. “Não quero ir para ficar confinada. Quero ir para poder passear e circular livremente sem preocupações — e, infelizmente, acho que esta é uma realidade ainda muito distante no Brasil.”