Mais de três quartos (76%) da população de Manaus têm anticorpos contra a Covid-19, aponta um estudo publicado por pesquisadores brasileiros na edição da prestigiosa revista Science desta terça-feira (8).
O trabalho, conduzido entre os meses de março a junho, analisou o número de pessoas que entraram em contato com o novo coronavírus e possuem anticorpos no sangue.
A capital amazonense foi uma das mais fortemente atingidas pela pandemia, e seus sistemas de saúde e funerário entraram em colapso. O primeiro caso foi registrado em 13 de março e, até a última segunda-feira (7), foram registrados 72.876 casos e 3.152 mortes.
Dados preliminares apresentados no final de setembro em um artigo pré-print, ainda sem revisão por pares, já apontavam uma taxa de 66% da Covid-19 na capital amazonense.
Para a publicação oficial, os pesquisadores puderam inserir dados coletados até outubro, revelando a incidência de 76%, maior do que a suposta necessária para a chamada “imunidade de rebanho” (entre 60%-70%).
Os cientistas realizaram testes sorológicos em mais de 6.000 amostras de doadores de sangue do Hemoam (Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas).
Foram analisadas também mil amostras de sangue de São Paulo, da Fundação Pró-Sangue, para fazer comparação estatística entre as duas populações. Em São Paulo, a prevalência encontrada foi de 29%.
Em junho, quando foi atingido o pico da pandemia, cerca de 52% da população de Manaus já havia sido infectada pelo novo coronavírus, segundo a pesquisa. Na mesma época, em São Paulo, 13,6% da população tinha tido contato com o vírus.
Para doar sangue, é preciso fazer um exame RT-PCR. Caso o resultado seja positivo, a doação não é permitida, mas mas muitas pessoas têm infecções assintomáticas sem terem conhecimento. Essas infecções, mais leves, já seriam suficientes para induzir a produção de anticorpos no organismo, embora em taxas menores do que naqueles pacientes hospitalizados ou com sintomas de Covid-19.
Como havia a hipótese de que as amostras coletadas de bancos de sangue teriam taxas de anticorpos menores do que os pacientes convalescentes, os pesquisadores avaliaram também o sangue de pacientes com quadro moderado de Covid.
Com esses critérios em mente e com um modelo matemático, os pesquisadores estimaram os valores encontrados de no mínimo 44% e no máximo 66% (com intervalo de confiança de 95%) da população de Manaus já ter anticorpos do tipo IgG no organismo três meses após o início da pandemia, e um valor máximo de 76%, considerando todos os falsos-negativos, em outubro.
Esses resultados indicam que, após junho, a taxa de prevalência continuou crescendo, mas em uma velocidade menor do que a esperada se as medidas sanitárias, como o distanciamento social e o uso das máscaras, não tivessem sido adotadas. Sem nenhuma medida preventiva, a taxa poderia ter chegado a 94%.
“É importante sabermos qual é a taxa de prevalência para entendermos como a pandemia evoluiu, uma vez que com base apenas nos casos reportados não temos uma visão real, já que só são testados, na melhor das hipóteses, os casos sintomáticos”, diz Ester Sabino, epidemiologista e pesquisadora do Departamento de Moléstias Infecciosas e do Instituto de Medicina Tropical da USP e principal autora do estudo.
A imunidade da população, no entanto, não foi capaz de barrar totalmente a transmissão, mas, sim, diminuir a velocidade de novos casos. Após o pico em maio e junho, a taxa de pessoas que tiveram contato com o vírus e possuíam anticorpos chegou a 66% em agosto. Em São Paulo, a taxa observada no mesmo período era de 30%, com 20 mil mortos.
“Esse número poderia ter dobrado se nada tivesse sido feito. O que Manaus está dizendo para São Paulo é que ainda tem muita gente que pode se infectar, ao custo de muitas vidas, se as medidas preventivas não forem adotadas”, afirma Sabino.
Algumas questões, no entanto, permanecem em aberto. A imunidade fornecida pelas vacinas, ainda em fases finais de avaliação, parece ser maior do que a proferida pela infecção natural. Há, no entanto, algum tipo de proteção sendo gerada após o contato com o vírus. “Não sabemos ainda a extensão da presença desses anticorpos para proteger contra reinfecções e também não é possível afirmar que as pessoas com anticorpos no sangue não deverão se vacinar, de maneira alguma. Ainda não temos essas certezas.”
A evolução da pandemia em Manaus foi de fato muito maior e mais acelerada do que em outras cidades, como São Paulo, onde vivem mais de 12 milhões de habitantes. Os motivos desse rápido crescimento ainda são incertos. Uma possibilidade seria de as pessoas viverem mais agrupadas, segundo Sabino, mas os dados de mobilidade, colhidos através de dados celulares, indicam que os manauaras diminuíram a mobilidade a partir de março, como em São Paulo. “Mas o deslocamento, em geral feito a pé, e a transmissão por barcos pode ter aumentado essa taxa”, afirma.
O grupo pretende agora coletar e apresentar resultados também para outras seis capitais: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza e Curitiba. A pesquisa foi desenvolvida em parceria com Universidade de Harvard (EUA), Imperial College de Londres (Reino Unido) e Universidade de Oxford (Reino Unido), além de institutos como o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), e recebeu apoio financeiro do Todos pela Saúde.