Nesta sexta, 16 de outubro, é comemorado o Dia Mundial da Alimentação. Em contrapartida, enquanto a fome ainda é sentida por parte significativa da população, são poucas as razões para celebrar. Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, divulgados no dia 17 de setembro deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a insegurança alimentar grave atingia 272 mil moradores e representava 6,3% do total de domicílios da Paraíba entre 2017 e 2018, abrangendo cerca de 80 mil lares.
Ainda de acordo com a pesquisa, em mais da metade dos domicílios paraibanos, cerca de 676 mil, havia algum tipo de insegurança alimentar. O percentual de famílias nessas condições no estado (53,5%) foi maior do que as médias do país (36,7%) e do Nordeste (50,3%). O módulo avaliou a situação das residências brasileiras em relação ao acesso, à quantidade e à qualidade dos alimentos, sem comprometimento de outras necessidades.
No total, 2,24 milhões de pessoas moravam em lares em que havia algum tipo de insegurança alimentar na Paraíba. Os números, porém, não apontam que todos esses moradores passavam por insegurança alimentar, indicando apenas que habitavam em domicílios em que essa situação acontecia.
Fatores que aprofundam a fome no país
A ActionAid, organização não governamental internacional cujo objetivo principal é trabalhar contra a pobreza em todo o mundo, indicou, em nota técnica publicada no último dia 13 de outubro, que a soma das desigualdades da sociedade brasileira com o crescimento do desemprego e os cortes nos programas sociais apontavam para um preocupante aumento da fome no Brasil.
A publicação da ONG traz dados nacionais obtidos pelo IBGE na mesma pesquisa divulgada em setembro deste ano, também referentes aos anos de 2017 e 2018, que apontam que 5% da população brasileira, algo acima de 10 milhões de pessoas, vivenciavam uma situação de insegurança alimentar grave no período, com a população rural, as regiões Norte e Nordeste, a população negra e mulheres sendo desigualmente mais afetadas. O Brasil apresentou mais de 84 milhões de pessoas enfrentando algum grau de insegurança alimentar em 2018, número que, na visão da ONG, tende a aumentar ainda mais diante dos impactos socioeconômicos decorrentes da pandemia do novo coronavírus, causador da Covid-19.
A ActionAid entende que as causas desse problema social estariam ligadas a pelo menos cinco dimensões que precisam ser discutidas com urgência e enfrentadas de forma participativa e com seriedade, para que se evite o aprofundamento da fome e para que o país possa superar esta condição. Veja abaixo esses aspectos.
Crescimento da extrema pobreza
A nota técnica da ONG relembra que em 2014 o Brasil chegou ao mais baixo índice de extrema pobreza de sua história, de 4,5% da população, mas, até 2019, um total de quase 5 milhões de pessoas voltaram a essa condição de miserabilidade. A perda de postos de trabalho e a consequente queda na renda de milhões de famílias mostraram-se como determinantes principais.
A ActionAid avalia que as medidas empregadas pelos governantes para o enfrentamento da crise econômica não apresentaram os resultados prometidos. Aconteceu o contrário, com o agravamento da extrema pobreza e das desigualdades no país. Sem poder aquisitivo, reduz-se a alimentação, cai a qualidade dos alimentos e aumenta a insegurança alimentar.
Com a crise do novo coronavírus, a situação tende a se agravar. A estimativa do Banco Mundial é de que 14,7 milhões de pessoas estejam na extrema pobreza até o fim de 2020, ou 7% da população brasileira.
Desmonte das políticas públicas de segurança alimentar
Um conjunto de programas e ações que foram construídos e implementados na área da segurança alimentar e nutricional nas últimas duas décadas sofreu cortes orçamentários, indica a ActionAid. Conforme a organização, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa Cisternas e o Programa de Restaurantes Populares têm na soma de seus orçamentos menos da metade daquilo que se estima necessário. O Programa Bolsa Família acumulou uma fila de espera até o fim do primeiro semestre deste ano de 1,5 milhão de famílias, que já estavam habilitadas para receberem essa transferência de renda. Em resumo, desmontou-se todo um sistema de proteção frente à fome dos mais pobres.
Para ajudar a combater essa situação, na região da Borborema, na Paraíba, com apoio da ActionAid e de uma rede de financiadores, parceiros da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia (associação de direito civil sem fins lucrativos que, desde 1983, atua para o fortalecimento da agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento rural sustentável no Brasil), foram articulados agricultores familiares, junto com grupos produtivos, Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTRs), Secretarias Municipais de Saúde e Assistência Social, constituindo-se um sistema de compra da agricultura familiar, que envolveu 2.700 cestas de alimentos, movimentando mais de 50 toneladas de alimentos saudáveis, livres de transgênicos e agrotóxicos, distribuídos a famílias em situação de vulnerabilidade da região.
O desenho da ação, que se aproxima da execução do PAA, priorizou a compra de produtos das mulheres agricultoras, bolos, pães e uma diversidade de frutas da época, como o caju. Algumas dessas mulheres estavam vivendo pela primeira vez a experiência da venda de sua produção. Em momento de crise, que além de sanitária, é política, os territórios em suas ações coletivas vêm garantindo renda e alimentos a quem precisa.
Demolição da estrutura institucional
Junto com o desmonte dos programas sociais, procedeu-se a demolição de uma estrutura institucional que foi muito importante para os avanços obtidos nos anos anteriores. Em 2016, extinguiu-se o Ministério do Desenvolvimento Agrário e, no início de 2019, também foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), instância de participação social que fora, desde 2003, essencial não só no monitoramento das políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), mas uma força viva de criação de políticas públicas inovadoras, como o PAA e o Programa Cisternas. “Nada se colocou no lugar, ficaram apenas os escombros de uma experiência que se tornara referência de participação social para o mundo todo”, diz a nota da ActionAid.
Destruição dos meios de subsistência
“A devastação ambiental que atualmente sofre o Brasil e o negacionismo frente ao problema climático têm direta relação com a fome”, afirma a ONG. A nota técnica detalha que no bioma do Cerrado, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), foram desmatados 28,40 milhões de hectares entre 2001 e 2019. As informações revelam também que, em 2020, a Amazônia é o bioma mais afetado pelas queimadas, tendo registrado desde janeiro mais de 60 mil focos. A destruição da biodiversidade envolve diretamente a perda de culturas alimentares tradicionais, essenciais para o sustento e autoconsumo de uma vasta proporção da população, sobretudo daquela com menor poder aquisitivo.
Alta dos preços e redução do auxílio emergencial
Apesar de não poder ser apontada como única responsável por um cenário desastroso, a pandemia trouxe desafios ainda maiores para quem a cada dia sofre a ameaça da fome. Segundo a PNAD Covid-19, no fim de julho deste ano, 41 milhões de pessoas estavam sem emprego no Brasil. “É fato que o chamado Auxílio Emergencial aprovado no Congresso Nacional evitou efeitos ainda mais extremos em relação à fome e à crise sanitária. Na última prorrogação dessa medida, o governo reduziu o valor do repasse à metade. Face a esta situação, preocupa a combinação de dois fatores que poderão muito proximamente provocar um fortíssimo agravamento no quadro de insegurança alimentar no país: a alta dos preços de alimentos e o corte no valor do auxílio emergencial, que terminará em dezembro”, prevê a ActionAid.
Desperdício de alimentos
Somente no Brasil, de acordo com dados de setembro de 2019 divulgados pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras), são desperdiçadas 23,6 milhões de toneladas de alimentos por ano, o que representa mais de 40 quilos de lixo por pessoa ao ano.
Uma pesquisa realizada pela Embrapa em parceria com a Fundação Getúlio Vargas apontou que um dos principais motivos para isso acontecer é que, na mentalidade do brasileiro, a abundância está diretamente ligada ao status social, estando ainda está associada à hospitalidade e cuidado com a família.
Conforme a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos é perdida por ano no mundo, o que representa cerca de 30% do total produzido. Esse número abrange toda a cadeia alimentar de campo, indústria, logística, varejo e consumidor.
A FAO revela grandes problemas na cadeia produtiva e também no comportamento de consumo que gera um prejuízo econômico de cerca de US$ 940 bilhões por ano, ou mais de R$ 3 trilhões. Enquanto isso, existem mais de 7,2 milhões de pessoas no Brasil que ainda são afetadas pelo problema da fome.
Os especialistas alertam para os prejuízos econômicos e sociais do sistema atual. É preciso que se melhore desde os sistemas de produção, logística até o comportamento do consumidor, que está na ponta da cadeia.
A pesquisa da Embrapa mostrou que as pessoas que têm a consciência do impacto do desperdício no orçamento são as que menos jogam comida fora, independentemente da classe social.
Lei nº 14.016, de 23 de junho de 2020
Foi publicada no dia 24 de junho deste ano, no Diário Oficial da União, a Lei nº 14.016, de 23 de junho de 2020, que dispõe sobre o combate ao desperdício de alimentos e a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano.
Segundo a legislação, os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, ficam autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano que atendam aos seguintes critérios:
- Estejam dentro do prazo de validade e nas condições de conservação especificadas pelo fabricante, quando aplicáveis;
- Não tenham comprometidas sua integridade e a segurança sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem;
- Tenham mantidas suas propriedades nutricionais e a segurança sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto comercialmente indesejável.
A lei abrange empresas, hospitais, supermercados, cooperativas, restaurantes, lanchonetes e todos os demais estabelecimentos que forneçam alimentos preparados prontos para o consumo de trabalhadores, de empregados, de colaboradores, de parceiros, de pacientes e de clientes em geral.
A doação poderá ser feita diretamente, em colaboração com o poder público, ou por meio de bancos de alimentos, de outras entidades beneficentes de assistência social certificadas na forma da lei ou de entidades religiosas.
Os beneficiários da doação autorizada por esta Lei são pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional.