Da quarentena em sua casa em Mantilla, na periferia de Havana, o escritor Leonardo Padura observa, todos os dias, filas enormes de cubanos diante de um mercado para comprar frango. E constata que é justamente na aglomeração estimulada pela busca de alimentos que se revela o traço mais ameaçador da pandemia do novo coronavírus em Cuba.
O país mantém a doença sob controle e contabiliza 1.754 casos de infectados e 74 mortos. Seu sistema de saúde não sinalizou colapso, mas a escassez de mantimentos, sim.
“Esta é a doença que se arrasta há 60 anos em Cuba”, diz o premiado escritor, de 64 anos, autor de “O homem que amava os cachorros”, “Hereges” e “A transparência do tempo”, entre alguns de seus romances publicados no Brasil pela editora Boitempo.
O cotidiano da vida cubana está sempre presente em sua vasta obra, que inclui também roteiros de cinema, e o tornou mais conhecido fora do que dentro de seu país, onde ainda é pouco divulgado e publicado.
Padura aproveitou o isolamento forçado pelo coronavírus para revisar o final do novo romance “Como o polvo en el viento” (“Como poeira ao vento”, na tradução livre para o português). Se a pandemia for controlada a tempo, deverá publicá-lo ainda este ano na Espanha e no próximo, no Brasil.
O detetive-escritor Mario Conde, o personagem que é também um companheiro literário, não aparece nesta obra, mas já começa a se movimentar na mente de Padura para um próximo romance.
Ele admite que a pandemia que infectou o mundo de forma global certamente lhe servirá, num futuro próximo, de fonte de inspiração. Enquanto isso, o autor cubano acompanha com atenção a falta de coordenação política entre os países, fechados dentro de suas fronteiras, confirma a política isolacionista de Donald Trump e reage com medo e preocupação ao desprezo do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, diante da propagação do vírus.
“Todos temos hoje uma informação maior sobre a pandemia em relação a outros assuntos. Por isso, considero irresponsável a atitude de Bolsonaro.”
O escritor cubano Leonardo Padura — Foto: AFP/Adalberto Roque
Leia abaixo a entrevista do escritor cubano ao G1:
Como você imagina que vamos sair desta pandemia? Melhor, pior? Em que mundo reentraremos?
Leonardo Padura: Tudo que está ocorrendo no transcurso deste ano é algo que escapava de qualquer imaginação. Nunca poderíamos conceber o que se passa nestes primeiros meses de 2020. O mundo e o homem vivem em um contexto em que as epidemias sempre tiveram uma presença ao longo da história. Só que esta nos surpreendeu e agora nos encontramos sem saber como enfrentá-la e para onde vai nos levar. Teremos que revisar muitas das maneiras em que estávamos vivendo, para regressar a uma normalidade que vai custar muito para se estabelecer e que será muito difícil de definir em todos os seus termos. Ficou claro que havia coisas que não funcionavam. Um dos elementos é o sistema de saúde. No futuro, os governos terão que revê-lo. Uma doença que contagiou no mundo a mesma quantidade de pessoas que podem estar sofrendo de câncer neste momento cortou o sistema de saúde que existia. Acredito que também teremos que revisar as relações entre os países, já que as soluções têm sido de caráter nacional. Os países se fecharam e sua principal luta contra a doença é dentro de suas fronteiras. Olham pouco para fora, quando justamente estão diante de um problema universal.
Leonardo Padura em foto de 2010. O que ele diz em Cuba é considerado o limite do que pode ser — Foto: AFP
Você esperava uma reação conjunta e coordenada de países a um vírus que se converteu em uma ameaça mundial ou esse esforço coletivo é apenas mais uma utopia?
Leonardo Padura: Creio que confiávamos que a globalização era o sistema no qual toda a Humanidade iria participar. Com a pandemia, temos a parte negativa da globalização. Globalizamos a doença e estão globalizando as soluções nacionais. Há um caso muito revelador, que é a posição que Donald Trump teve na pandemia. Ele não foi incoerente com a política que mantinha. Desde o início, tratou de resolver os problemas dos Estados Unidos, para recuperar a grandeza dos Estados Unidos. E enfrentou a pandemia como uma agressão contra os Estados Unidos, que precisa resolver com seus próprios meios. Sua posição em relação à Organização Mundial da Saúde reflete bem essa política. Quando deveríamos todos contribuir para buscar uma solução global para um problema global, a economia mais poderosa do mundo tenta resolver o problema dentro de suas fronteiras. E em outros países do mundo começamos a ver políticas contra imigrantes e atitudes xenofóbicas que prejudicam a política de uma convivência global.
A pandemia reforçou o desabastecimento em Cuba. As cadernetas de racionamento estão de volta, há filas enormes para conseguir alimentos, o que agrava a ameaça de contágio…
Leonardo Padura: Sim, o grande problema que ocorreu em Cuba não foi com a saúde pública. As cifras de contágio e de mortes são controladas. O sistema de saúde pública não colapsou porque o país tinha experiências de eventos anteriores, como, por exemplo, furacões, a partir de um governo central, que organiza e distribui tudo. Felizmente, por obra divina, não houve mais contágio em Cuba. O distanciamento social que se exige da população termina com as filas para comprar produtos alimentícios ou de limpeza. Da minha casa, vejo todos os dias as filas para a compra de frango, que se produz em um mercado, com as pessoas aglomeradas, umas em cima de outras. Cuba arrasta há 60 anos a falta de alimentos. As carências econômicas do país têm estado presentes por muitos anos. A economia cubana tem problemas de funcionamento, de eficiência, de produtividade. Agora estamos vendo essa consequência de uma maneira muito mais dramática.
O cubano Leonardo Padura em participação na Flip em 2015 — Foto: Paola Fajonni/G1
Você acredita então que a escassez afeta mais os cubanos do que a ameaça do vírus em si?
Leonardo Padura: As pessoas estão muito preocupadas com a pandemia. A população é, em sua maioria, escolarizada e tem percepção do risco. Mas tem necessidades. Há pessoas que jogam com esta ameaça e tentam resolver estas necessidades, fazendo negócios com a escassez. Vendem lugares nas filas, compram produtos para revendê-los a um preço maior e lucrar com isso.
O que diferencia essa pandemia em Cuba da crise de desabastecimento e dos apagões de energia que marcaram os anos 1990? Ela reaviva o mesmo trauma entre os cubanos?
Leonardo Padura: O que ocorreu naquela época é diferente, embora às vezes tenha efeitos semelhantes. Nos anos 1990, o risco maior era sensivelmente o de não comer. Hoje, este risco diminuiu, mas não desapareceu. Felizmente, o governo estabeleceu uma política para tratar de evitar fenômenos que ocorreram naqueles anos, como cortes de eletricidade. No entanto, o corte nos transportes públicos dificulta muito a vida da população. Há um aspecto interessante no nível global: como está ocorrendo o risco sobre a nossa vida e como cada um de nós tem uma responsabilidade civil, social e familiar maior. Se eu contrair o vírus, posso me curar, mas posso contagiar minha mãe de 92 anos. Temos que ser muito mais responsáveis e isso nos obriga de uma maneira, sem grandes conflitos, a entregar espaços de liberdade e de nossa decisão pessoal aos governos, como forma de proteger-nos e de salvar-nos todos. Isso ocorreu em vários países, como Espanha, Itália, China e Alemanha.
Penso que o vírus tem também uma parte muito dramática em seu percurso pelo mundo. Demonstrou até que ponto os seres humanos devemos temer a morte. Preferimos perder muitas coisas para salvar a vida. Para mim, isso é muito dramático. A vida do homem é uma luta perdida, porque lutamos para viver sabendo o desfecho desta luta. Todos vão morrer. Sabemos, no final, quem será o vencedor. Pode ser que a vitória se produza antes ou depois. Conseguiremos viver 80, 90,100 anos, mas o fim é inevitável. Contudo, o medo da morte não desapareceu.
No seu entender, o contexto atual isola o Brasil da comunidade internacional? Quais serão os reflexos do governo Bolsonaro para os brasileiros?
Leonardo Padura: Tenho uma relação pessoal e cultural muito próxima do Brasil, para onde viajo frequentemente e tenho amigos. Sigo com especial interesse as notícias que vêm daí. Além disso, é um país muito importante em termos econômicos e demográficos para a América Latina e o mundo. Um grande problema no Brasil pode ter muitas repercussões no mundo. Ontem li uma entrevista com o pensador mexicano Enrique Krauze, que é um homem de direita e defensor da política neoliberal, e afirmava que Bolsonaro pode ser acusado de genocídio por sua atitude diante da pandemia. É a opinião de alguém que pode estar mais próximo da política de Bolsonaro.
Sinto muito medo do que ocorre no Brasil, pela consequência terrível, caso haja um descontrole acelerado e definitivo da pandemia em seu território. A OMS propôs a única política que devemos seguir neste momento até que apareça a cura definitiva. Entendo que a economia é fundamental para qualquer país, seja em Cuba, EUA, Brasil. Mas eu também acredito que a responsabilidade de um político é muito maior porque tem em suas mãos as vidas de cidadãos.
Não ter uma atitude responsável pode ser altamente perigoso. Diariamente, as primeiras notícias que lemos são sobre a pandemia. Acredito, então, que todos temos hoje uma informação maior em relação a outros assuntos. Por isso, considero irresponsável a atitude de Bolsonaro.
O que você tem feito durante a quarentena? Como é a rotina na sua casa neste período?
Leonardo Padura: O que mais sinto falta nessas semanas em que tenho estado muito isolado é a impossibilidade de estar com meus amigos. Sou uma pessoa que necessita dessa relação como um equilíbrio para o que faço todos os dias. Meu trabalho já exige de mim a solidão, a concentração. Pude aproveitar esse isolamento em função do trabalho. Terminei e enviei à minha editora um novo romance. Fiz a sua revisão final durante a quarentena. Se tudo der certo, o livro poderá ser publicado em espanhol em setembro deste ano e traduzido para outros países, inclusive o Brasil, no próximo ano. Estou trabalhando em um projeto de cinema, do qual não posso adiantar nada. Vamos manter o mistério sobre ele (risos). Isso me cai muito bem: fazer um trabalho distinto da literatura após terminar um romance. Tenho também em mente uma ideia para um próximo romance. Sempre prefiro me dar vários meses entre o fim de um romance e o início de outro. Gosto de aproveitar esse período, às vezes faço um trabalho para promover os livros, viajando e fazendo apresentações. Outras vezes faço trabalhos em outros gêneros, escrevendo ensaios, jornalismo ou escrevendo para cinema. Nos últimos anos, escrevi vários roteiros.
Pessoas co máscaras caminham pela Cidade Velha de Havana — Foto: Reuters/Alexandre Meneghini
Do que se trata o romance que acaba de escrever?
Leonardo Padura: O romance se chama “Como el polvo en el viento” (“Como poeira ao vento”, na tradução livre para o português) tomado da música “Dust in the wind”, do grupo Kansas nos anos 70. É uma história que tem a ver com a dispersão pelo mundo de minha geração cubana. Começa no fim dos anos 80, quando os personagens são adultos, por volta dos 30 anos, e chega até a segunda década do século XXI, vivendo em Cuba ou fora da ilha, em Espanha, Estados Unidos, Porto Rico, Argentina. É um pouco uma crônica de como a minha geração se dispersou pelo mundo.
Seu companheiro literário, Mario Conde, está no romance?
Leonardo Padura: Não, neste não. Mas Mario Conde estará no romance que estou pensando em começar a escrever, nos próximos meses.
A pandemia do novo coronavírus poderá inspirá-lo para um romance futuro?
Leonardo Padura: Eu creio que sim, que vá aparecer em algum dos projetos que tenho de maneira imediata. Mas, como em quase todos os meus processos, temos que esperar que ela termine. Hoje ela nos parece terrível, mas não sabemos como será em alguns meses, se conseguiremos controlá-la ou se o descontrole e nos fará entrar em alguma espiral.
Como o senhor acha que Mario Conde enfrentaria a quarentena?
Leonardo Padura: Acho que um pouco como eu. O que mais lhe faria falta é não poder estar com amigos e, como ele próprio diria, tomar uns tragos de rum e falar de qualquer coisa, inclusive, falar merda. Talvez estivesse lendo muito e escrevendo. Porque ele também é escritor. No meu último romance, “A transparência do tempo”, há, inclusive, uma parte escrita por Mario Conde.
Qual a sua sensação de escrever tanto sobre Cuba e ser mais lido e conhecido em outros países do que no seu?
Leonardo Padura: Esse é um problema que me afetou nos últimos 15, 20 anos porque tenho a possibilidade que meus livros sejam editados na Espanha, circulem por toda a América Latina e sejam traduzidos em 30 idiomas. Certa vez, caminhava por Copacabana com minha mulher e fui cercado por algumas pessoas e reconhecido como “Padura, o autor de 'O homem que amava os cachorros'”.
As pessoas me reconhecem no Brasil porque meus livros são divulgados na TV, nos jornais e nas rádios. Isso não ocorre em Cuba, onde faço raras apresentações públicas. À exceção de “A Transparência do tempo”, todos os meus livros foram editados em Cuba, mas as edições têm apenas dois mil, no máximo quatro mil exemplares. Minha presença pública é muito limitada porque algumas pessoas definiram que eu não devo ser promovido no meu país. O que mais me afeta é que a quantidade livros que chegam a meus possíveis leitores cubanos é muito inferior do que poderia ser.