Com cerca de 4 milhões de casos confirmados de infecção pelo novo coronavírus no mundo e mais de 276 mil mortos, a corrida para o desenvolvimento de uma vacina tem se intensificado. Já são mais de cem candidatas sendo testadas em vários países, de acordo com o último balanço da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgado na terça. E oito delas entraram na etapa de ensaios clínicos – que envolvem humanos.
Tradicionalmente, vacinas levam em média dez anos para serem produzidas – a mais rápida foi a da caxumba, que demandou quatro anos (e isso foi nos anos 1960). Mas o desenvolvimento de novas tecnologias acelerou o processo, e a expectativa atual é que se tenha um produto no ano que vem.
Na semana passada, o otimismo cresceu com o anúncio de resultados de uma vacina em desenvolvimento na Universidade de Oxford. Ela é uma das que está em teste clínico e se estimou que pode estar pronta até o fim deste ano.
Os cientistas do Instituto Jenner, em Oxford, estão alguns passos à frente na corrida por usarem como ponto de partida uma pesquisa anterior de vacina para outro coronavírus, o causador da Mers, doença respiratória da mesma família da covid-19 que atingiu especialmente o Oriente Médio a partir de 2012.
Logo que o Sars-CoV-2 surgiu na China, no fim do ano passado, os pesquisadores de Oxford aproveitaram a plataforma que eles tinham criado para a Mers para testá-la em macacos rhesus e os resultados foram muito promissores. Com uma dose da vacina, conseguiram imunizar 18 animais. O resultado foi publicado no dia 1.º na revista Science Advances.
Para fazer esta vacina, usou-se como vetor um adenovírus (que causa resfriado comum) inativo, no qual se introduziu uma proteína do Mers-CoV, capaz de fazer o corpo produzir anticorpos contra o vírus. Agora, cientistas usaram a mesma plataforma, mas, com uma proteína do Sars-CoV-2.
Como eles já haviam provado anteriormente que ela era segura para humanos (a primeira etapa dos ensaios clínicos – veja infográfico baixo), foi possível saltar para a segunda etapa, de eficácia. Eles juntaram as duas fases em uma só e, agora, preveem começar testes em 6 mil pessoas até o fim do mês.
É como se o vírus “imitasse” o outro para induzir o sistema imune a reagir ao vírus verdadeiro quando há contaminação.
Estratégias diversas
Vacinas clássicas usam uma versão atenuada do vírus que se quer combater para desencadear a resposta imunológica. Mas, na corrida para combater a covid-19, novas tecnologias estão em teste na expectativa de serem mais seguras e eficazes contra a pandemia.
Uma das estratégias é usar o RNA mensageiro (RNAm) do vírus, a molécula que “lê” as informações genéticas e comanda a produção de proteínas. Aqui vale a mesma premissa anterior – de que possa induzir o sistema imunológico a agir quando o próprio vírus resolver atacar.
Duas das oito vacinas em fase clínica – da Moderna e da Pfizer – usam esse modelo.
Como não é necessário manipular diretamente o vírus – o que demanda o uso de laboratórios de alta segurança –, o trabalho fica mais rápido e fácil. O porém é que ainda não existe nenhuma vacina já em uso no mundo com essa formulação.
Algumas estratégias que já estão na etapa clínica, porém, ainda se baseiam em versões inativas do vírus (mais seguras que as atenuadas). É o caso da proposta da chinesa Sinovac, que também se mostrou efetiva em rhesus. Foram testadas duas doses.
Animais vacinados com a mais alta, que tiveram o Sars-Cov-2 introduzido em seus pulmões, tiveram a melhor resposta e não desenvolveram a doença.
“As primeiras vacinas que ficarão prontas não necessariamente serão as melhores. Serão só as primeiras. Pode ser que elas só consigam conferir 30% de proteção. O que já ajuda a aumentar um pouco de imunidade e diminuir a circulação da doença”, afirma a bióloga Natália Pasternak, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, que pretende entrar na corrida.
“Mas ainda será necessário continuar pesquisando para chegar a melhor vacina possível, porque essa é uma doença que veio para ficar”, diz.
E mesmo que a maior parte das pesquisas não dê bons resultados, comenta a pesquisadora, são estudos importantes porque ajudam a entender muito sobre a doença. "Esse esforço sem precedentes da ciência vai ajudar muito depois a busca por vacinas para outros males", afirma.
“É importante testar várias estratégias porque ainda não sabemos quais vão funcionar e não podemos apostar as fichas em uma só”, complementa o imunologista Ricardo Gazzinelli, que coordena uma linha de pesquisa no Brasil – parceria da Fiocruz, com UFMG e Butantã –, que tenta fazer uma vacina contra o Sars-CoV-2 usando como vetor um influenza atenuado. “A vantagem é que esse é o vírus hoje usado nas vacinas contra o H1N1. Já foi testado em milhões de pessoas, então temos confiança que é seguro”, diz.
“E temos fábricas já no Brasil que fabricam a vacina contra a influenza em grande quantidade. Poderiam fazer isso para o coronavírus se essa estratégia der certo”, explica.
Essa é uma preocupação em todo o mundo. Mesmo antes de ter uma vacina pronta, empresas e governos já se antecipam para ter formas de produzir bilhões de doses para atender a população. A Moderna, por exemplo, já fez uma parceria com a Johnson & Johnson, e a farmacêutica AstraZeneca está trabalhando com os pesquisadores de Oxford.
Como se faz uma vacina
Exposição de voluntários ainda envolve debate ético
Um dos desafios do desenvolvimento de vacinas é que, quando um produto enfim chega aos ensaios clínicos, é preciso contar com o tempo. Em geral, para saber se a vacina é efetiva, é preciso esperar que os voluntários entrem em contato com o vírus naturalmente, o que leva tempo.
Com a emergência da covid-19, pesquisadores têm discutido se essa regra deveria mudar para permitir que os voluntários fossem deliberadamente expostos ao vírus após tomarem a vacina, o que aceleraria o processo, apesar de colocar as pessoas em risco. O chamado teste de desafio humano foi tema de um artigo na semana passada na Science, que traz sugestões para torná-lo eticamente aceitável.
Negligência sobre vírus anteriores atrasou pesquisa
Pesquisadores brasileiros que estão investigando o novo coronavírus e também tentando desenvolver vacinas para a doença comentam que se pesquisas anteriores com outros coronavírus (como Sars e Mers) tivessem avançado, talvez hoje a busca por uma vacina ou um tratamento para a covid-19 estivessem mais avançadas.
A vacina de Oxford é um exemplo disso que deu certo, mas muitas outras acabaram sendo paralisadas. “Foram vírus negligenciados, apesar do potencial pandêmico que eles demonstraram em 2002 e 2012. Se tivéssemos entendido esses vírus melhor, talvez estivéssemos mais adiantados agora”, afirma o virologista Thiago Moreno, da Fiocruz, que investiga o reposicionamento de drogas que têm outros usos para a covid-19.
Como essas doenças acabaram contidas antes de se espalharem pelo planeta, as pesquisas foram interrompidas, o que se mostrou um erro. Já há algum tempo a ciência esperava o surgimento de um vírus que tomaria uma proporção pandêmica. E aconteceu. “Mas deixou-se de investir na ciência básica que poderia ter nos deixado mais bem preparados”, diz.
Mesmo com o avanço da covi-19, a ciência mais exploratória vem sendo prejudicada. Chamou a atenção no fim de abril o fim de um financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH) para investigar novos coronavírus em morcegos – provável origem do Sars-Cov-2. O trabalho, que era conduzido em Wuhan (China), foi terminado por suspeitas infundadas de que o vírus teria escapado do laboratório.
“Hoje sabemos que é o spike (aquelas pontinhas na coroa do vírus) que tem de ser neutralizado no Sars-CoV-2 por causa dos estudos com Sars, mas poderíamos saber mais”, afirma Ricardo Gazzinelli, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas e pesquisador da Fiocruz e da UFMG. Ele coordena um dos dois projetos de vacina contra o coronavírus no Brasil.