No verão de 1795, pacientes começaram a chegar ao Hospital Bellevue, na cidade de Nova York, com sintomas de febre amarela. A metrópole americana vivia o início de uma epidemia que, somente naquele ano, deixaria 730 mortos, resultado devastador em uma cidade que, na época, tinha população de 40 mil habitantes.
Mais de dois séculos depois, o Bellevue, o mais antigo e um dos mais prestigiosos hospitais públicos do país, está novamente na linha de frente do combate à nova epidemia que assola a cidade. Nas últimas semanas, alas e profissionais médicos foram reorganizados para receber o crescente número de pacientes com covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.
Até esta sexta-feira (10), o Estado de Nova York já registrava mais de 170 mil casos e mais de 7.000 mortes.
Hoje, o Bellevue ocupa um prédio de 22 andares e faz parte do New York City Health and Hospitals Corporation, maior sistema de hospitais públicos do país. Os serviços médicos pela instituição são cobrados de acordo com a renda familiar. Caso o paciente não tenha plano de saúde, solicita assistência financeira para pagar a conta.
O Bellevue é também um entre dez centros médicos nos Estados Unidos reconhecidos por seu programa de patógenos especiais, ou seja, tem médicos especificamente treinados e unidades especializadas em biocontenção para o tratamento de doenças infecciosas.
Sua história ao longo dos últimos séculos se confunde com a de Nova York e também com a os avanços da medicina nos Estados Unidos.
Início no século 18 como albergue para pobres
Durante anos, o Bellevue foi sinônimo de morte. O hospital ficou célebre por sua ala psiquiátrica e também por abrigar doentes terminais, pobres e indigentes, pacientes que eram rejeitados por outras instituições. Mesmo aqueles com doenças incuráveis ou que não tinham dinheiro para pagar recebiam tratamento.
O hospital começou como uma enfermaria de um albergue para pobres, em 1736. Anos depois, foi transferido para instalações próximas ao East River.
Segundo o historiador David Oshinsky, professor da Escola de Medicina da Universidade de Nova York e autor do livro Bellevue, sobre a história do hospital, durante o século 18 o lugar abrigava pobres e doentes que não tinham chances de se recuperar.
Bellevue foi responsável por vários avanços na prática de medicina nos Estados Unidos
NYC Health + Hospitals/Bellevue
"Era um lugar para onde você ia para morrer", disse Oshinsky em entrevista à rádio pública NPR.
Quando casos de febre amarela começaram a surgir em Manhattan em julho de 1795, no verão do Hemisfério Norte, os doentes eram levados ao Bellevue. Na época, os médicos não tinham ideia de como tratar a doença e nem ao menos sabiam que era transmitida por mosquitos. Logo a cidade já registrava várias mortes por dia.
Essa seria a primeira de várias ondas da epidemia de febre amarela, que se estendeu até 1803 e deixou milhares de mortos em Nova York, grande parte deles imigrantes pobres, já que muitos moradores ricos fugiram para zonas rurais com avanço da doença.
Cólera e Guerra Civil
De acordo com Oshinsky, no século 18, a prática de medicina nos Estados Unidos era extremamente primitiva e não havia anestesia, antissépticos ou medidas de higiene.
"No Bellevue, até depois da Guerra Civil, suas chances de sobreviver a uma operação eram médias, mas infecções após a operação ocorriam em mais da metade dos casos", disse o historiador em entrevista a um programa de TV da Universidade da Cidade de Nova York.
Entre os que sobreviviam a uma cirurgia, havia 50% de chances de não sobreviver ao mês seguinte. "Os médicos faziam o melhor que podiam", complementou Oshinsky.
No início do século 19, o complexo do Bellevue já incluía, além de um albergue para pobres, enfermaria, orfanato, hospício e prisão.
Quando uma epidemia de cólera atingiu Nova York, em 1832, o hospital foi crucial no combate à doença, que matou pelo menos 3,5 mil pessoas na cidade naquele ano, a maioria pobres e imigrantes. Milhares de outros morreram em surtos seguintes, em 1849 e 1866.
Durante a Guerra Civil americana, o hospital tratou tanto de soldados quanto dos manifestantes que se rebelaram contra o recrutamento em uma série de protestos violentos que deixaram dezenas e mortos e milhares de feridos na cidade em 1863.
Avanços
Hospital Bellevue começou como uma enfermaria de um albergue para pobres, em 1736
NYC Health + Hospitals/Bellevue
O Bellevue era renomado por abrigar os melhores cirurgiões do país na época, e seus médicos tratavam não apenas dos pobres, mas também de personagens importantes e até presidentes. Mas nem sempre as intervenções eram bem-sucedidas. Até a década de 1840, as cirurgias e outros tratamentos eram feitos sem anestesia.
Em 1881, quando o presidente James Garfield sofreu um atentado, um cirurgião do hospital, Frank Hamilton, foi chamado a Washington. Os disparos não foram fatais inicialmente, mas, segundo Oshinsky, o médico não acreditava na teoria microbiana (que estabeleceu, no fim do século 19, que microorganismos causam doenças) e colocou as mão sujas, sem luvas, nos ferimentos. O presidente morreu dois meses depois, em razão da infecção.
Em 1893, foram novamente médicos do Bellevue que trataram do presidente Grover Cleveland, que tinha um tumor maligno na boca. Mas, de acordo com Oshinsky, desta vez os médicos usaram todos os métodos antissépticos disponíveis na época, e o tumor foi removido com sucesso.
Ao longo dos séculos, muitos dos principais médicos dos Estados Unidos foram treinados ou ensinaram no Bellevue, que foi o primeiro hospital americano a ter uma escola de medicina.
O hospital também testemunhou em primeira mão vários avanços na prática médica no país. Por exemplo, o primeiro corpo de ambulâncias dos EUA foi criado no hospital, em 1869, pelo médico Edward Barry Dalton, um veterano da Guerra Civil. O hospital também foi o primeiro a ter ala de maternidade, escola profissional de enfermagem, clínica pediátrica e departamento de patologia forense, entre outros avanços.
Em seu livro, Oshinsky ressalta que, mesmo em uma época em que o preconceito limitava as oportunidades a parte dos americanos na área médica, o Bellevue se destacava por ter profissionais judeus e cristãos, negros e brancos, homens e mulheres.
Hospital psiquiátrico
A promessa do hospital de não recusar tratamento a ninguém significava que suas alas estavam sempre cheias. Durante a pandemia de gripe espanhola, que matou pelo menos 50 milhões de pessoas no mundo entre 1918 e 1920, havia pacientes dormindo até nos corredores. Além disso, como o hospital sempre esteve entre os mais avançados do país, recebia também os doentes mais graves.
Muitos americanos ainda hoje relacionam o Bellevue ao tratamento de doentes mentais. A partir de meados do século 19, uma pequena ala reservada para esses pacientes foi ampliada e as instalações psiquiátricas ganharam destaque.
Hospital foi o primeiro do país a ter uma escola profissional de enfermagem
NYC Health + Hospitals/Bellevue
No livro, Oshinsky relata alguns dos experimentos feitos no século passado com pacientes psiquiátricos do hospital, muitos deles com resultados duvidosos, como terapia de eletrochoque em crianças.
A ala psiquiátrica do hospital recebeu várias celebridades, entre elas o saxofonista Charlie Parker, o escritor Norman Mailer e os beatniks William S. Burroughs e Allen Ginsberg Norman Mailer. Também abrigou Mark David Champan, que assassinou o músico John Lennon em 1980.
Muitas pessoas com distúrbios mentais e sem-teto também se abrigavam no Bellevue. Em 1989, a reputação do hospital sofreu um golpe quando um homem sem-teto que estava vivendo ilegalmente em uma sala de máquinas no complexo e usava um jaleco furtado, circulando pelo hospital como se fosse médico, estuprou e assassinou uma médica grávida.
Aids e Ebola
A partir de 1981, o Bellevue se tornou o principal destino de pacientes com Aids. Na metade dos anos 1980, os Estados Unidos registravam mais de 130 mil novos diagnósticos de HIV por ano. Sem cura ou tratamento, o diagnóstico positivo era encarado como uma sentença de morte.
Nova York era um dos principais epicentros da epidemia. No Bellevue, médicos e enfermeiros, sobrecarregados com o grande número de casos, conviviam com o temor de contaminação e o impacto emocional de não poder salvar os pacientes.
"O Bellevue tratou de mais pacientes com Aids do que qualquer outro hospital no país. E mais pacientes com Aids morreram no Bellevue do que em qualquer outro hospital no país", disse Oshinsky em entrevista à NPR.
Segundo o historiador, muitos dos estudos e testes que resultaram em tratamentos para a doença foram feitos no Bellevue.
Em 2014, o hospital enfrentou um novo desafio, o de tratar o médico Craig Spencer, no único caso de ebola registrado em Nova York. Craig ficou em uma ala especial de isolamento no sétimo andar, estabelecida durante uma epidemia de tuberculose resistente a medicamentos que atingiu a cidade nos anos 1990.
Em seus quase três séculos de história, o hospital só fechou uma vez, após a passagem do furacão Sandy, em 2012 — quando ficou inundado e sem eletricidade e os cerca de 800 pacientes que permaneciam no local tiveram de ser evacuados.