Cenário eternizado em produções audiovisuais brasileiras como o filme “Cinema, Aspirinas e Urubus” e a série “Onde Nascem os Fortes”, o Lajedo de Pai Mateus, em Cabaceiras, no Cariri paraibano, ganhou projeção internacional. É que o local, que fica na “Roliúde Nordestina” foi escolhido pela banda de synthpop inglesa Ladytron como cenário do clipe e do curta-metragem para a música “Tower of Glass”, lançados este mês.
O G1 conversou com Daniel Hunt, músico fundador da banda, produtor e compositor, e também com o diretor e atores dos filmes. Assista ao clipe abaixo.
A ideia de fazer o clipe surgiu a partir de uma conversa entre Daniel e Manuel Nogueira, o diretor e roteirista. “Manuca [Manuel] é meu amigo. A gente chegou a conversar há muito tempo sobre fazer alguma coisa juntos. Quando eventualmente falamos sobre ‘Tower of Glass’, ele imediatamente sugeriu que a gente fizesse algo além de apenas um videoclipe, algo que tivesse vida própria e existisse em espaços físicos”, diz Hunt.
O encontro aconteceu em um restaurante no bairro do Pinheiros, em São Paulo, que serve comida regional do Rio Grande do Norte. “Eu adoro a comida de lá e foi nesse cenário sertanejo que deu-se a primeira conversa. A decisão de filmar na Paraíba veio depois, por acaso. Manuel me mostrou umas fotos da área, aquela paisagem irreal, e eu sabia que era perfeita para isso”, conta o músico.
O diretor do clipe é gaúcho, mas mora em São Paulo. Além de “Tower of Glass”, ele já dirigiu vários filmes publicitários para marcas multinacionais e também clipes de artistas alternativos de música eletrônica. Um dos trabalhos mais recentes dele foi o clipe de “Is That For Me”, parceria de Anitta com o DJ sueco Alesso. O filme foi gravado na amazônia.
“Eu já fiz trabalhos em áreas muito diferentes, mas este de agora especial, porque foi uma coisa que me envolveu muito, afinal sou muito fã da banda e admiro demais o trabalho dele. Além disso, eu tive muita liberdade, não só em termos criativos do que colocar no vídeo como também na mensagem que eu quis passar. Não queria que fosse algo puramente estético, mas que levasse à reflexão”, explica Manuel.
O curta-metragem fala sobre a vontade de ter o controle sobre as coisas e acabar deixando de viver o momento, deixando de viver as relações na intensidade do que elas são. “Apesar desse roteiro pré-concebido, também há muito espaço para a subjetividade, para a interpretação que as pessoas vão dar ao assistir os vídeos”, comenta o diretor.
Juliano Lopes assina a direção de fotografia e a produção executiva ficou por conta de Luciana Mattar e Gustavo Baldoni. O figurino, a maquiagem e o design de produção é assinado por Alma Negrot.
Ancestralidade e energia
Manuel nunca esteve na Paraíba até antes da gravação do filme. Ele chegou a cogitar outros cenários, até em outros países, antes de se encantar pelo Lajedo de Pai Mateus.
“Este lugar tem uma beleza e uma identidade que são muito raras, são muito potentes. Primeiro porque tem essa coisa do isolamento no tempo. Estando lá, a gente perde a percepção de saber onde se está na linha do tempo. É como se as pedras, a vegetação, tudo parasse no tempo. Isso é muito rico e precisa ser explorado para além do óbvio de ser uma paisagem do interior. Foi isso que fizemos no curta e no clipe”, diz o diretor.
Cenários de cinema e ecoturismo são os atrativos de Cabaceiras, PB
O Lajedo de Pai Mateus, é uma elevação rochosa com cerca de 1,5 km² e que tem cerca de 100 grandes pedras arredondadas de até 45 toneladas que se destacam sobre a superfície. A formação é fruto do desgaste do solo ao longo de milhões de anos. Em algumas pedras são encontradas pinturas rupestres atribuídas aos índios cariris, que viveram na região há cerca de 12 mil anos.
Blocos do lajedo têm formatos curiosos, como a Pedra do Capacete — Foto: Maurício Melo/G1 PB
O local recebeu este nome devido à lenda do curandeiro Pai Mateus, que teria morado em uma das pedras no século XVIII e era considerado pelos moradores como uma personalidade sagrada, por usar ervas medicinais em época de escassez de profissionais na região. Além da pedra em forma de 'cumbuca' de sopa invertida, onde ele teria morado, a Pedra do Capacete é uma das mais interessantes devido ao seu formato.
Conforme Manuel, o lugar se encaixava no conceito de “fora da realidade” que ele explorou nos filmes. “Criamos um universo que é o mundo dessa história, onde tudo é possível conforme as regras criadas para este universo. Para que a gente contasse essa história do jeito que queríamos, precisávamos fazer em um lugar que não fosse facilmente reconhecível, que quebraria a imersão. E no Lajedo encontramos exatamente o que queríamos”, analisa Manuel.
Entre pedras e trilhas, Lajedo de Pai Mateus esconde inscrições rupestres e sítios arqueológicos — Foto: Karoline Zilah/G1
Sinergia
“Tower of Glass” foi o primeiro trabalho internacional da dupla de atores brasileiros que estrelam os vídeos. Larissa Porto e Saulo Rocha – que coincidentemente já se conheciam e trabalham juntos – também concordam com Manuel quanto à energia que emana do local.
“A paisagem do Lajedo parece um sonho. É um lugar mágico e transformador. A gente acordava de madrugada e via o nascer do sol naquela paisagem, com aquele céu. A ancestralidade daquele espaço, das pessoas que passaram por ali, me contagiou e tudo isso contribuiu para que saísse um trabalho tão bonito”, diz Larissa.
A atriz foi a primeira selecionada para o clipe e Saulo foi indicado em seguida. Ambos se conhecem há anos e fazem parte da mesma companhia de teatro no Rio de Janeiro. Para ele, a sinergia do clipe com o trabalho autoral da companhia foi instantânea.
Cena do clipe de "Tower of Glass", da banda Ladytron — Foto: Manuel Nogueira/Divulgação
“De certa forma, era como se as coisas que a gente já faz na Teatro de Afeto se encaixasse na proposta do diretor e da banda. O roteiro falava da questão do tempo, que escapa pelos dedos. No nosso primeiro trabalho no teatro, o texto foi todo baseado em como as sociedades percebem o tempo, então a gente já tinha essa relação, este estudo, essa pesquisa corporal e quando mostramos pra ele, tudo se encaixou. Foi como se a banda, o diretor e a gente estivéssemos trabalhando na obra, paralelamente e sem saber”, relata Saulo.
Nos filmes, os atores fazem números de dança e de teatro que fazem parte do repertório autoral deles, tudo voltado para a mensagem que eles querem passar. “Tem toda esta questão do autoconhecimento, das formas de afeto e como o afeto transforma. A gente vive em um mundo onde as coisas estão duras, as pessoas muito tensas. Queremos mostrar que é importante ter este contato, esse tato com o outro. Não deixar que o tempo leve esta conexão que faz a gente seguir forte”, completa Larissa.
Na avaliação do compositor da música, a liberdade individual dos atores foi a chave para o processo produtivo. “Eles foram escolhidos por causa do que poderiam acrescentar ao filme, algo que vai além da pré-concepção sobre como a música deveria ser apresentada. Os dois têm um carisma único, poderoso. Quando eu os encontrei na estreia do filme, senti como se já os conhecesse há mil anos”, comenta Daniel Hunt.
Cerca de 100 blocos milenares de granito compõem paisagem do lajedo — Foto: Karoline Zilah/G1
Cenário rico e autêntico
A cidade de Cabaceiras tem pouco mais de 5 mil habitantes e fica a 180 quilômetros de João Pessoa. A cidade se tornou popular depois de ser "descoberta" por cineastas interessados nos cenários naturais típicos do semiárido e na boa luminosidade, que permitia mais tempo de filmagem por dia.
Desde então a cidade virou set de filmagens para mais de 30 produções audiovisuais. A vocação para o cinema e o clima seco semelhante à Hollywood original nos EUA rendeu o título de "Roliúde Nordestina" para o município.
Cabaceiras ganhou o título de 'Roliúde Nordestina' por servir de cenário para filmes e séries de TV — Foto: Karoline Zilah/G1
Para o cineasta, a região tem potencial para crescer a nível global, não só pelas paisagens mas também por, apesar de ser no interior, ter facilidade logística para a realização de produções audiovisuais.
“Tem muita história possível para ser contada neste lugar, muita interpretação diferente para esta região, para esta cultura, para os elementos estéticos que são só deste lugar. É um lugar lindo, que pode ser explorado por produções que fogem dos clichês. Qualquer narrativa pode ser encaixada neste lugar tão rico e tão autêntico. Quanto mais o Brasil conseguir se descentralizar e entender estas identidades como potências de criar mensagem, mais a gente vai crescer no setor audiovisual”, completa o diretor.
O compositor da faixa não pôde participar das filmagens na Paraíba pois estava na Europa no momento da gravação. Daniel Hunt mora em São Paulo há vários anos e contou que apesar disso não conhece ainda a Paraíba, mas tem desejo de conhecer. “Eu já tive várias experiências maravilhosas no Nordeste e ainda assim conheço pouco desta região. Quero e preciso conhecer mais, saber mais da cena cultural da Paraíba, especialmente agora. Talvez este seja o momento para isso”, comenta o músico.
Ladytron — Foto: Maria Louceiro/Divulgação
Mais filmes
“Tower of Glass” faz parte do disco “Ladytron”, sexto álbum do quarteto de Liverpool lançado em 2019. O disco é o primeiro disco de inéditas da banda desde “Gravity The Seducer”, de 2011, quando a Ladytron entrou em hiato. Durante o período, os integrantes da banda continuaram a produzir, em seus projetos pessoais [Daniel chegou a montar uma banda no Brasil durante esta época].
O vídeo é o quinto feito para a divulgação das faixas do álbum e o segundo gravado no Brasil. Hunt conta que a banda ainda pretende produzir mais. “Nós ainda temos mais um vídeo planejado para a música ‘Far from Home’, que também vai se filmado no Brasil, mas ainda não começamos. Depois vamos partir para outros filmes. Após tanto tempo, nós queremos fazer quantos vídeos sejam possíveis e ainda há muito espaço para ser explorado neste álbum. É uma abordagem diferente do que fizemos no passado. Nós não estamos mais interessados em videoclipes convencionais”, conta.
Em 2019 a Ladytron fez shows de divulgação na Europa e para 2020 há pelo menos outros três shows marcados na Inglaterra. A banda também não parou de compor e prevê novidades. “Em breve vamos anunciar novos shows para este ano. Sobre o Brasil, nós iremos amar tocar aqui novamente”, completa o músico.