Ingrid Silva ficou famosa ao pintar suas sapatilhas para que parecessem com a cor de sua pele. No entanto, quem vê essa jovem negra andando pelas ruas de Nova York, cidade onde vive há 11 anos, talvez não tenha noção do que a primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem passou para chegar até o posto de referência para jovens pretinhos e pretinhas que sonham em um dia poder se apresentar diante do público em um teatro.
Se situe, o desafio não é fácil, sobretudo se tratando de Brasil e sua máquina racista que limita o sonho de pessoas negras. Com Ingrid não foi diferente. Quer dizer, quase. A determinação da mãe e a insistência da hoje mulher de 30 anos fizeram a diferença numa corrida que não tem nada de meritocrática (tire o cavalinho da chuva).
O Hypeness conversou com Ingrid Silva sobre essa mistura de sensações provocadas por mudanças repentinas na realidade da carioca que morou em uma comunidade próxima ao bairro de Benfica, zona norte do Rio e que queria ser médica, mas esbarrou na dança.
“Nossa de uma forma gigantesca! Além da minha história não ser comum, muitas oportunidades surgiram ao longo da vida para que esta jornada fosse feita. Vejo hoje em dia como as pessoas acreditam mas na arte através do meu trabalho. Ainda mais no balé clássico”, pontua.
Ingrid Silva sempre se interessou por esportes, mas foi a partir do projeto social Dançando para Não Dançar, criado por Thereza Aguilar, que ela deu o start numa trajetória promissora.
"Eu comecei no balé em uma comunidade próxima da minha residência, na Vila Olímpica da Mangueira, em um projeto social chamado Dançando para não Dançar. Até então todos eram parecidos comigo e com resto do mundo. Quando fui para outra escolas e ganhei bolsa estava na zona sul do Rio. Bem elitizada. Eu era minoria, nunca entendia e nem questionava sempre achei normal até chegar ao Dance Theatre of HARELM, onde todos se pareciam comigo."
A bailarina se refere, claro ao racismo. O universo da dança no Brasil sempre teve uma relação discriminatória com o negro. Embora os afro-brasileiros não tenham fugido do estereótipo de que são exímios dançarinos, estilos, digamos, clássicos, sempre foram ‘coisa de branco’.
A história de Mercedes Baptista não nos deixa mentir. Não fosse o trabalho de base realizado pelos movimentos e muitas estudantes negras apaixonadas por dança que entram no ensino superior, a primeira bailarina negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro estaria esquecida.
Baptista se tornou referência para homens e mulheres negras como Ingrid Silva. A insistência de Mercedes, que também se apresentou no Teatro Experimental do Negro ao lado de nomes célebres como Ruth de Souza, serviu para deixar a situação menos complexa.
“Nunca em milhões de anos eu teria esta perspectiva!”, exclama Ingrid sobre sua representatividade nos palcos.
“Olhar pra tudo isso hoje é algo gratificante, porque se não fosse pela arte eu jamais teria chegado onde cheguei. Se não fosse pela arte eu não estaria onde estou. Além disso, a representatividade no balé no nosso é quase escassa, sendo negra, é quase nenhuma”.
Nova York e as sapatilhas
Ingrid Silva não pensava em morar nos Estados Unidos e como quem vê cara não vê coração, poucos imaginam os perrengues enfrentados por ela para chegar aos EUA sem falar inglês.
A jovem carioca foi aos Estados Unidos por ter conquistado uma bolsa de estudos. Mesmo com medo, recebeu o apoio da mãe – migrante do Espírito Santo e que plantava arroz. O início no Dance Theatre of Harlem também não foi fácil, mas Ingrid não desistiu.
Agora, 10 anos depois, ela se apresenta, linda e preta com seu cabelo black power que lembra uma coroa de rainha. “Com a era de redes sociais, falamos muito sobre a representatividade que é necessária. ‘Você não consegue ser se não se ver’ em diversas áreas que aspira”, ressalta.
“Elas chegaram! Pelos últimos 11 anos, eu sempre pintei a minha sapatilha. E finalmente não vou ter mais que fazer isso! Finalmente. É uma sensação de dever cumprido, de revolução feita, viva a diversidade no mundo da dança. E que avanço, viu, demorou mas chegou!” , foi assim que Ingrid Silva regiu no Twitter no momento em que as sapatilhas com a cor de sua pele preta chegaram.
Ingrid silva
✔@ingridsilva
ELAS CHEGARAM!!!
Pelos últimos 11 anos, eu sempre pintei a minha sapatilha. E finalmente não vou ter mais que fazer isso!
FINALMENTE
E uma sensação de dever cumprido, de revolução feita, viva a diversidade no mundo da dança. E que avanço viu demoro mas chego!
102 mil
23:00 – 1 de nov de 2019
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O momento se tornou um marco para tanta gente. A beleza de ver a alegria de uma mulher negra se confunde com a raiva de que isso ainda seja necessário. Mas, como diz Emicida, são as ‘pequenas alegrias da vida adulta’.
Se atente ao simbolismo disso e aposto que vai se emocionar e compreender os efeitos do racismo na vida de uma pessoa. Durante 11 anos, Ingrid desembolsou 12 dólares para pintar suas sapatilhas.
"As pessoas não entendem muito sobre as sapatilhas. Não é um mito ou ato de revolução. Sempre foi como a companhia que entrei, historicamente, usava suas sapatilhas. Arthur Mitchell, o fundador [do Dance Theatre of Harlem] criou este look para companhia e eu simplesmente adicionei a minha rotina. Quando postava sobre pintar elas é porque de uma certa forma era um ato político. Porque com mais de 300 anos ninguém fez uma sapatilha para negros até hoje. Muita gente não sabe, mas a combinação sapatilha rosa e meia rosa foi criada por ser uma arte elitista com muitos brancos. Então, estas cores seriam mais próximas de suas peles. Como uma continuidade."
Finalmente gozando do reconhecimento à altura de seu talento, Ingrid Silva foi uma das estrelas de uma campanha da Nike sobre a urgência de todos terem as mesmas oportunidades. Em um vídeo gravado dentro de um teatro, ela divide cena com outro dançarino negro, Alex. Aliás, ela foi PRIMEIRA bailarina negra em um comercial da marca.
Representatividade é tudo
Hypeness
“Sem palavras! Acho que eu sei sim o que significa, mas até agora não tenho palavras pra descrever como você vê no vídeo aquele momento de choro e por eu estar ali, tendo aquela oportunidade. São muitos anos de luta este reconhecimento e árduo. E necessário!”
Chamada de menina prodígio pela narradora, ninguém menos que Serena Williams, Ingrid não esconde o orgulho, mas revela que nunca pensou em ser bailarina.
“Eu nunca pensei em ser bailarina mesmo, não tem nada a ver com racismo. Sempre quis ser médica, não sei porque mas a dança foi mais forte e acabou me conquistando. É uma responsabilidade imensa porque pela primeira vez uma bailarina negra está em uma campanha da Nike. Eu já estou fazendo história e abrindo caminhos!”
Ingrid silva
✔@ingridsilva
Orgulho de tudo que Deus tem trazido no meu caminho! Obrigada @Nike pela oportunidade e por poder compartilhar minha história!
Video part 1
325
08:55 – 18 de fev de 2020
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O céu é o limite para Ingrid Silva, que não voa sozinho. Lá dos Estados Unidos, ela serve de referência pra tanta gente, inclusive sua mãe, que finalmente pode ver a filha dançar.
“Foi maravilhoso ter ela lá me vendo, sentimento de missão e desejo cumprido. Ser filha da minha mãe não é pra qualquer um agradeço todos os dias sem ela não estaria aonde estou hoje”.
Primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem, Ingrid Silva é negra. Ingrid Silva é brasileira. Ingrid Silva faz o que quiser com seu corpo negro – que é livre.
“A maior lição que o balé me ensinou foi a ser eu mesma e acreditar na minha jornada. As coisas não acontecem por acaso. Acho que em troca eu continuo dando aulas e contribuindo para um mundo melhor”.
Hypeness