A fronteira entre México e Estados Unidos tem mais de três mil quilômetros de extensão. Abrange seis estados mexicanos e quatro norte-americanos.
Essas áreas fronteiriças vão desde cidades a desertos inóspitos, e são alvos de ações clandestinas. E os automóveis contribuem, muito, para essas atividades ilegais.
O limite entre os dois países é a fronteira mais atravessada do mundo. Cerca de um milhão de pessoas são detidas anualmente indo ilegalmente do México para os Estados Unidos.
Mas, se invertermos este cenário, a fiscalização mexicana é praticamente zero para que vem do país vizinho.
Um fenômeno que está abalando com a economia do México desde o final dos anos 1980, mas que ganhou muita força na última década, são os carros clandestinos vindos dos Estados Unidos.
O mercado mexicano – 14° maior do mundo – tem 47.790.950 automóveis registrados legalmente em circulação, mas estima-se que há mais 19 milhões ilegais, o que representa mais de 1/3 do total da frota no território.
Esses veículos não têm documentos, a placa leva o nome de cidades dos Estados Unidos, outros têm placa falsa ou sequer estão emplacados.
A solução que Manuel López Castillo, presidente do México, encontrou para ter controle sobre esses carros é legalizando a circulação. Com isso, o governo arrecadaria cerca de 50 bilhões de pesos, o equivalente a R$ 11,4 bilhões. A medida causou revolta na indústria.
Direto do México, Autoesporte teve acesso à informações de como funciona a entrada desses carros clandestinos pela fronteira e como legalizá-los afeta o mercado local e o Brasil, que tem o país da America do Norte como segundo maior parceiro comercial.
Esses carros clandestinos são conhecidos como “carros chocolate”. A expressão faz referência a uma iguaria, como se fosse um chocolate suíço, por não existirem no mercado local.
São carros que não estão à venda oficialmente no México, ou são versões diferentes de modelos que já são vendidos por lá, mas muitas vezes mais equipados ou mais potentes do que os oferecidos de maneira regular naquele país.
Os quatro estados norte-americanos que fazem fronteira com o México são: Califórnia, Arizona, Novo México e Texas. Na divisa com quatro, dos seis estados, o Texas é onde há maior fluxo de entrada.
Porém, o estado mexicano de Baja Califórnia, que faz fronteira com Califórnia e Arizona, é o local com maior entrada proporcional ao tamanho do território.
“Quem compra esses carros geralmente são pessoas com um perfil socioeconômico baixo ou médio. Mas a grande maioria é usada para cometer crimes, principalmente pelo narcotráfico, que domina boa parte do país”, explica Aarón Lisandro García, advogado especialista em questões tributária, que mora na Cidade do México, capital do país.
Aarón ressalta três reflexos terríveis para o país com esse fluxo ilegal de carros. O primeiro é que o mercado automotivo local deixa deixa de lucrar bilhões. O segundo problema é a criminalidade – principal motivo da compra – e a poluição, já que a maioria desses veículos são movidos a diesel – a Cidade do México tramita uma projeto para banir carros movidos a diesel na cidade.
A Comissão Ambiental da Megalópole do México decretou estado de emergência para a qualidade do ar de diversas cidades em 2019, com atenção para a capital.
“Outro crime de quem compra esses carros é a violação do NOM-041-SEMARNAT-2015, que são as normas mexicanas que delimitam o máximo de emissão permitido para hidrocarbonetos, monóxido de carbono, óxido de nitrogênio e dióxido de carbono”, explica. “Mas certamente esses criminosos não pensam de jeito nenhum nisso”, completa.
O máximo de emissões permitido no México é de 144,5 g/km (gramas de dióxido de carbono (CO2) por quilômetro rodado). Dependendo do modelo a diesel esse número pode duplicar.
Quase 600 quilômetros da Cidade do México está Guadalajara, capital do estado de Jalisco.
Os carros que chegam dos Estados Unidos, por não terem documentos ou não passar por nenhuma inspeção, entram no país em más condições. São veículos roubados ou em péssimas condições, já que estavam próximos de serem descartados no país de origem.
Nos Eua, carros usados que circulariam normalmente em outros países jamais rodariam por lá. Depois de alguns anos, atingem preços praticamente simbólicos. Por US$ 500 (ou até menos), é possível adquirir um carro que funcione (ainda que em más condições).
A advogada brasileira Larissa Abreu, que é autorizada a exercer a profissão na cidade há dois anos, conta que em Guadalajara há muitos “carros chocolate” com a placa do Texas.
Para ter uma ideia de como estão espalhados e tem fácil acesso para entrar no país, a cidade de Laredo, no extremo sul do Texas, na divisa com o México, está a quase 900 km de Guadalajara.
“A maioria dos veículos passam como carros de turismo, por isso consegue atravessar a fronteira facilmente, apenas dizendo às autoridades que estão a turismo ou de passagem para outro país. Como o sistema de trânsito não é interligado com a imigração, não conseguem identificar que o carro está ilegal no país. A fiscalização é muito pequena”, diz a advogada.
Ela conta que 90% dos carros que entram são destinados ao tráfico e um dos motivos da polícia não tentar interferir nessa entrada é justamente pelo medo de mexer com os cartéis de drogas. Legalizá-los é iniciar uma guerra com a indústria.
“A legalização desses carros não afetaria o narcotráfico em si, pois eles são extremamente poderosos, mas dificultará a vida deles. Já as pessoas que compram esses carros para não pagar impostos serão afetadas. Mas o principal golpe será na indústria nacional”, afirma a brasileira.
Segundo a Associação Mexicana da Indústria Automotiva, a legalização desses carros causará uma perda imensurável na compra de carros novos e usados, levando o setor a uma quase recessão.
Ainda de acordo com a Associação, mesmo sendo fácil adquirir um veículo desses atualmente, a prática é ilegal. A partir do momento que o governo os legalizar e passar a arrecadar impostos, o efeito colateral será o travamento da economia local.
Os fabricantes serão desestimulados a vender no mercado mexicano, o que, de alguma forma, irá ajudar o monopólio do narcotráfico.
Para os dois advogados, a solução é reforçar as fronteiras, localizar esses veículos clandestinos, obrigar os donos a pagar os impostos devidos, e apreender os carros.
Ao invés de legalizar, o ideal seria fiscalizar ainda mais. É um processo de longo prazo, mas que ajudará a fortalecer a economia local e combater o crime.
O principal parceiro comercial do Brasil, a Argentina, vem passando por uma crise grave no setor nos últimos três anos. Motivada por essa instabilidade, o Brasil teve queda de 31,9% nas exportações em 2019 – cenário que está mais pessimista para este ano. E isso pode piorar com a legalização desses carros clandestinos do México.
Aquele país, como já dissemos, é o segundo maior parceiro comercial do Brasil. De 2017 a 2019, exportamos mais de 210 mil carros para o país, sendo que ano passado o aumento foi de quase 30% em relação a 2018.
A estimativa é que, se os “carros chocolate” forem legalizados, cerca de 900 mil veículos novos deixarão de ser vendidos em dois anos no México, afetando diretamente os negócios com o Brasil.