Depois de 15 anos governado por uma coalizão eleitoral de esquerda — a Frente Ampla —, o Uruguai se prepara, neste momento, para a presidência de Luis Lacalle Pou, do conservador Partido Nacional. Diferentemente do que ocorre em outros países latino-americanos, entretanto, os uruguaios parecem encarar a mudança no poder sem grandes polarizações ou embates acirrados nas ruas.
“Isso se deve a um fator histórico: o Uruguai é um dos países mais democráticos da América Latina, com instituições muito fortes e partidos consolidados, que nasceram junto com o Estado”, pontua a uruguaia Nastasia Barceló, analista política e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina da USP (Universidade de São Paulo), em entrevista ao R7.
“Há uma tradição para a mudança, a alternância de poder é encarada de forma natural e tanto os partidos como os candidatos estão acostumados com transições tranquilas e pacíficas. Além disso, nessa última eleição, a diferença entre os dois candidatos com 100% das urnas apuradas era de pouco mais de um ponto percentual”, acrescenta.
Anos de avanço
Apesar desta recente derrota do Frente Ampla nas urnas, os avanços experimentados pelo país nos últimos quinze anos são inegáveis. Em 2005, quando Tabaré Vázquez — o primeiro presidente da coalizão de esquerda — assumiu, o PIB per capita do Uruguai era de 4.720 dólares (aproximadamente R$ 19.892,00, em valores atualizados), segundo dados do Banco Mundial. Em 2018, o índice foi de 15.560 dólares (cerca de R$ 65.950,00).
“Para este primeiro mandato de Tabaré Vázquez [que acabou se reelegendo para governar o país entre para o período de 2015 a 2020] havia uma urgência na questão econômica”, lembra Nastasia. À época, o Banco Mundial indicava que mais de 32% dos uruguaios viviam na linha da pobreza.
“Dessa forma, foram criados programas específicos para essa população. A renda mínima — algo como o Bolsa Família uruguaio — foi ampliada para setores da sociedade em situação de extrema vulnerabilidade”, completa a pesquisadora.
Combate à pobreza, agenda liberal e luta contra o tabagismo
Logo em 2007, o índice de uruguaios na linha da pobreza já havia caído para 29,6%. Em 2008, desceu mais, para 24,2%. O primeiro governo de Vázquez ainda renegociou a dívida do país junto ao FMI (Fundo Monetário Internacional) e tentou tornar a economia uruguaia menos dependente do Brasil e da Argentina, com investimentos em turismo e soja.
“Foram anos também muito marcados pela luta do presidente contra o tabagismo. Se tornou um marco, algo muito bem aceito pela população uruguaia. E houve a adoção de uma agenda liberal nos costumes, com o apoio ao casamento homossexual e à adoção de crianças por esses casais”, completa Guilherme Frizzera, especialista em América Latina e professor de Relações Internacionais na Unità Faculdade.
O mandato de José Mujica
O apoio dos uruguaios se tornou grande e o Frente Ampla não encontrou dificuldades para que o sucessor de Tabaré Vázquez, José Mujica, fosse eleito em 2009.
“O Mujica tem uma história bem mais ampla, de ter ficado mais de dez anos preso durante a ditadura militar no Uruguai e de chegar ao poder sem revanchismo. Fora a imagem que transmitiu, de simplicidade e conexão com o povo: era um cara que utilizava serviços públicos enquanto presidente, morava na própria casa e dirigia o próprio carro”, conta o professor.
A analista Nastasia Barceló completa: “No poder, José Mujica tomou posições que até poderiam ser chamadas de radicais, a favor da legalização da maconha e do movimento das mulheres para legalizar a interrupção da gravidez. Mas do ponto de vista econômico, ele nunca foi contra empresários ou setores produtivos da sociedade uruguaia. O país tem sua economia baseada na produção de commodities agrícolas e, como presidente, Mujica sempre dialogou com esses grupos”.
A volta de Vázquez
Em 2015, o PIB per capita do Uruguai registrava uma alta histórica de 15.830 dólares (R$ 66.129,00) e apenas 9,7% da população vivia na linha da pobreza. Já era o início do segundo mandato de Tabaré Vázquez — que, de acordo com os especialistas ouvidos pelo R7, não foi tão bem-sucedido quanto o primeiro.
“As pautas econômicas continuaram, mas com menos intensidade, e os números econômicos começaram a apresentar uma desaceleração. Em paralelo, dos índices de violência urbana em todos os países da América do Sul, os do Uruguai foram os que mais cresceram. Os assaltos principalmente a pequenos comércios dispararam”, explica Guilherme Frizzera.
“Se, durante os governos anteriores, foram criados postos de trabalho, de três anos para cá aconteceu um declínio nos empregos e o crescimento da pobreza. Consequentemente, a insegurança pública aumentou e a população passou a entender, de maneira geral, que a presidência não tinha sido capaz de enfrentar problemas, mesmo que o Uruguai estivesse muito melhor do que naqueles anos em que a Frente Ampla ingressou no poder”, endossa Nastasia Barceló.
Referência em direitos humanos
É consenso entre analistas internacionais que o legado dos governos Frente Ampla foi a projeção do Uruguai no cenário internacional como um país de referência em direitos humanos e assistência universal às pessoas.
“Há uma coesão de políticas públicas e sociais muito positivas. E o Uruguai aumentou suas reservas no Banco Central e aconteceu uma descentralização da educação, com a inauguração de diferentes campi da Universidade do Uruguai fora da capital, Montevidéu”, aponta a especialista uruguaia.
O primeiro desafio de Luis Lacalle Pou, que assume em março de 2020, deve ser o enfrentamento do problema da segurança pública, segundo Guilherme Frizzera.
“Em seguida, ele deve focar em retomar o crescimento da economia uruguaia de forma satisfatória. Os combustíveis do Uruguai são os mais caros da América do Sul e, recentemente, o peso uruguaio se desvalorizou muito em relação ao dólar. Isso traz consequências para o bolso da população”, finaliza o professor.