Ao longo dos últimos anos, juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) e de outras instâncias do Judiciário tiveram participação ativa na definição dos rumos da política nacional.
Colocaram atrás das grades quadros partidários importantes e empresários fraudadores de concorrências públicas, e restringiram alguns privilégios como o foro especial para autoridades.
A intenção predominante no Judiciário nesse período, na avaliação do cientista político Christian Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), contudo, foi motivada mais por interesses políticos próprios do que pelo desejo de fazer Justiça.
Para Lynch, principalmente a partir de 2013, quando teve início uma intensa crise de legitimidade de parlamentares e do Executivo, um grupo de juízes entendeu que sua missão era promover o "avanço civilizacional" do país e passou a exercer funções que seriam do Congresso Nacional.
Foi o que o cientista social chamou de "revolução judiciarista", ou "judiciarismo", um movimento com motivações políticas, cuja parte mais visível para a opinião pública é a operação Lava Jato.
"Esse movimento foi considerado um remédio contra um Legislativo e um Executivo corrompidos. Mas alguns juízes, promotores e advogados passaram a atuar como guardiões dos valores republicanos, com a intenção de tentar 'cassar' a classe política, e extrapolou as suas funções", afirma Lynch, em entrevista à BBC News Brasil.
Esse é um ciclo da história recente do país que, na avaliação do cientista político, chegou ao fim na quinta-feira (07/11), com a decisão do Supremo de vetar a prisão em segunda instância, o que resultou na libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Para Lynch, a decisão marca a "dissociação definitiva" do Supremo com a Lava Jato. "Foi um acerto de contas com a operação, que já vinha se esboçando nos últimos dois anos, como reação à instabilidade política e à politização excessiva do Judiciário", avalia.
A decisão do Supremo que beneficiou o ex-presidente representaria ainda um desejo da maioria do tribunal de "reequilibrar o balanço entre os poderes". "O retorno do Lula ao jogo vinha sendo desejado pela maior parte dos congressistas e ministros do Supremo como condição para o restabelecimento da normalidade política suspensa desde os protestos de 2013. Sinaliza a intenção de dar um basta à instabilidade: impeachment, liminar de ministro do Supremo impedindo posse de ministro de Estado, Polícia Federal prendendo senadores… O tribunal entendeu que é hora de retomar a rotina."
Na avaliação do cientista político, seria também um sinal de isolamento do presidente Jair Bolsonaro em relação aos outros poderes. "Bolsonaro percebeu que não tem a influência que imaginava ter no Supremo, como já não tem no Congresso. Esse isolamento tem várias causas, mas a principal delas é voluntária. É um Executivo que não gosta e não quer fazer política", afirmou.
"O resultado disso é que os presidentes do Senado e da Câmara vão tocar a pauta legislativa com uma autonomia que não tinham desde o governo Itamar Franco."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil — Qual sua avaliação sobre a decisão do Supremo que beneficiou o ex-presidente Lula?
Christian Lynch — Nos últimos quinze anos, com a justificativa de efetivar a Constituição, o Judiciário passou a exercer na prática várias atribuições do Legislativo. Isso aconteceu com mais força nos momentos que considerava de paralisia do Congresso, principalmente a partir de 2013. O Judiciário entendeu que cabia a ele promover um avanço civilizacional do país, mesmo que isso extrapolasse suas funções. Foi o que chamei de 'revolução judiciarista'.
Diante da crise de legitimidade do sistema político a partir de 2013, esse 'judiciarismo' foi considerado uma espécie de remédio contra um Legislativo e um Executivo julgados inoperantes e corruptos. Nesse sentido, a decisão que beneficiou Lula representou o fim de um ciclo. Na minha leitura, o que quis a maioria do tribunal foi acenar para o Congresso, dizendo que o "tempo da usurpação" terminou, que a bola da política está de volta com os congressistas.
BBC News Brasil — Qual a repercussão dessa decisão em relação à Lava Jato?
Lynch — Se depender da nova maioria do Supremo, o Judiciário vai interferir menos em questões políticas. Foi uma espécie de acerto de contas com a Lava Jato, que já se esboçava nos últimos dois anos como reação à instabilidade política e à politização excessiva do Poder Judiciário. Esse acerto foi facilitado pelas revelações da Vaza Jato (vazamento de mensagens de procuradores no aplicativo Telegram publicado pelo site The Intercept Brasil), que terminaram de enfraquecer esse judiciarismo, do qual a operação fazia parte, em relação à opinião pública.
É um processo que começou em janeiro, quando Sergio Moro abandonou a magistratura para se tornar ministro do governo Bolsonaro. Desde então, a ideia de luta contra a corrupção simbolizado pela Lava Jato passou a ficar identificado com o bolsonarismo, ou seja, com o autoritarismo de direita. Boa parte dos liberais deixou de apoiar a Lava Jato.
A operação se enfraqueceu, deixou de ter a força política que tinha. E essa decisão do Supremo foi o sinal que faltava para sinalizar sua dissociação definitiva do judiciarismo lavajatista. É o fim do ciclo lavajatista no Supremo. Minha impressão é de que esse assunto de Lava Jato, que virou uma espécie de monopólio da direita nos últimos anos, é um assunto que venceu.
BBC News Brasil — E o que essa decisão do Supremo representa para o Congresso?
Lynch — A maioria do Supremo acenou para o Congresso que terminou essa intenção de substituir o Legislativo. Nesse caso, é como se o (presidente do Supremo, ministro Dias) Toffoli dissesse aos congressistas: 'Agora é com vocês. Nós julgamos que não pode ter execução da sentença até o trânsito em julgado, mas vocês podem alterar a Constituição se quiserem'. Em outras palavras, o tribunal mostrou um desejo de restabelecer o equilíbrio entre os poderes que esse judiciarismo tinha rompido.
BBC News Brasil — Quais foram as condições para a ascensão desse judiciarismo?
Lynch — A Constituição de 1988 organizou um Estado de Direito muito forte e avesso ao autoritarismo, para prevenir que 1964 se repetisse. Fortaleceu tanto o Ministério Público e o Judiciário que tornou possível que, como corporações, eles adquirissem interesses políticos próprios.
Enquanto isso, a partir de 2013, o Legislativo sofreu uma crise de legitimidade, decorrente da sensação de que ele não representava mais os anseios da sociedade. E que a degeneração do presidencialismo de coalizão transformara a classe política em parasitas de verbas e cargos públicos.
Aparece então essa nova força do Judiciário. A crença de que juízes e promotores altruístas e civicamente orientados poderiam tomar o lugar de políticos corruptos foi o combustível da derrocada do sistema político.
Aparecem Moro, (o procurador Deltan) Dallagnol, e a maioria de ministros do STF que os sustentou, juntamente com o procurador-geral da República na época, Rodrigo Janot. Tivemos então o encarceramento por parte do Judiciário e do Ministério Público de boa parte da elite política do país, promovidos a título de purgar o país de ervas daninhas.
Essa revolução judiciarista começou a ser desmontada cuidadosamente pelo (ex-presidente Michel) Temer, que não queria ser engolido por ela. Ele não reconduziu o Janot para a Procuradoria-Geral da República, nomeou ministros mais conservadores para o STF (o ministro Alexandre de Moraes), fez aliança com Gilmar Mendes…
Com a atual liquidação da quase unanimidade criada em torno da Lava Jato desde 2014, esse movimento terminou. Nesse caso, Toffoli mostrou um desejo de deixar as barbas do Judiciário de molho. Um outro exemplo dessa intenção foi não ter se manifestado em relação à fala do (deputado) Eduardo Bolsonaro favorável a um novo AI-5. Creio que ele não achou necessário. O excesso de exposição tem feito mesmo muito mal ao Judiciário.
BBC News Brasil — Mas por que, agora, o presidente do STF decide abrir mão de protagonismo?
Lynch — Porque desde 2017 ele começou a achar que o Judiciário tinha ido longe demais, legislando no lugar do Congresso, prendendo deputados e senadores com liminares, impedindo o governo de nomear ministros… Conforme o presidencialismo de coalizão começou a ser percebido como de cooptação ou de corrupção, houve espaço para esse judiciarismo, segundo o qual os juízes, promotores e advogados seriam os guardiões naturais dos valores liberais e republicanos em um Brasil oligárquico e corrupto.
Então, surgiu uma espécie de 'tenentismo togado', como eu chamei quando o movimento estava no auge. Assim como, na época do tenentismo (movimento dos anos 1920 e 1930), a doutrina do 'cidadão fardado' permitia a entrada do militar na política, com o judiciarismo surgiu a doutrina do 'cidadão togado', segundo a qual juízes e promotores não poderiam ficar impassíveis diante da decadência moral da nação. E aí aconteceu o que a gente viu, e que explica em boa medida as ações da Lava Jato, voltadas para 'cassar' a classe política que liderou o país nos últimos 15 anos.
O declínio desse movimento começou com a subida do Temer à Presidência. Ele resistiu à Lava Jato, mobilizou o ministro Gilmar Mendes para absolver a chapa que ele integrava no TSE, que foi um julgamento de conto de fadas, da carochinha, e para desmoralizar a Lava Jato publicamente, nomeou para o STF um ministro afinado, Alexandre de Moraes… Temer percebeu que o centro decisório dessa 'revolução' não estava em Curitiba, mas no Supremo e na PGR.
Havia a expectativa de que, depois disso tudo, o presidente que fosse eleito em 2018 pudesse pacificar as instituições. Mas, com a eleição do Bolsonaro, vieram os receios de golpe de Estado por parte dos militares que o apoiavam, no meio do descrédito do Legislativo e do Judiciário. Agora, esse receio parece ter passado. A decisão da maioria do STF simboliza esse desejo de reequilibrar o balanço entre os poderes.
BBC News Brasil — O governo Bolsonaro esperava uma postura diferente em relação à libertação do ex-presidente Lula?
Lynch — Pelo que os jornais disseram, o Planalto ficou decepcionado com o Toffoli, de quem buscou se aproximar nos últimos tempos. O governo percebeu que não tem a influência que imaginava ter no Supremo, como já não tem no Congresso. Esse isolamento da influência do governo nos outros poderes tem várias causas, mas a principal delas é voluntária.
O Executivo não gosta e não quer fazer política. Especialmente aquela parte que compõe o coração do governo, a que eu chamo 'partido familiar', o presidente, os filhos e agregados. Eles acreditam que a eleição de Bolsonaro foi uma espécie de revolução, e por meio dela o povo brasileiro, que seria essencialmente conservador, teria enfim se livrado dos liberais e dos socialistas que o teriam tiranizado por 30 anos. Nesse esquema, eles não precisariam fazer política, ou seja, negociar com seus adversários.
Eles acharam que conseguiriam governar diretamente pelo Twitter e no WhatsApp, emparedando os outros poderes o tempo todo. Mas essa estratégia foi menos eficaz do que acreditaram. Ao contrário do Congresso eleito em 2014, o atual Legislativo, saído da mesma eleição que Bolsonaro, se julga tão legítimo quanto ele, pensa que não tem motivo para baixar a cabeça.
Então, se o governo se recusa a organizar uma coalizão para sustentar a sua agenda no Congresso, tanto melhor. Os presidentes do Senado e da Câmara vão tocar a pauta legislativa com uma autonomia que não tiveram desde o governo Itamar Franco.
BBC News Brasil — Como reagirá e vem reagindo o governo Bolsonaro, neste momento de mais força do Legislativo?
Lynch — O governo Bolsonaro, representado pelo seu coração, que é esse partido familiar, influenciado por ideias conservadoras radicais, decidiu se isolar de propósito, acreditando que tem ao seu lado o povo e que não tem de ceder um milímetro a quem pensar diferente em matéria política.
A agenda principal dele não é a política econômica, nem a administrativa. Ela é cultural e tem uma orientação reacionária, porque, aliada ao pentecostalismo, quer a restauração de valores 'cristãos', uma 'recristianização' da sociedade brasileira.
Essa agenda se reflete nos campos da cultura, educação, direitos humanos e relações internacionais. O objetivo dela é interromper o processo de secularização da sociedade por meio de uma guerra cultural. É um programa ideológico bem radical, que impede o governo de se relacionar com os diferentes e o leva a esse isolamento que é em larga medida, como eu disse, voluntário.
O presidente manifestou muitas vezes o desejo de não negociar com partidos, e sim com as bancadas temáticas afinadas com seu programa, ligadas à indústria das armas, ao agronegócio, e ao pentecostalismo.
Como a decisão do Supremo (que libertou Lula) revelou que sua influência é reduzida não só no Congresso, mas também naquele tribunal, a agenda radical dessa 'guerra à modernidade' acaba restrita ao âmbito administrativo federal. Ele pode nomear pessoas ligadas às lideranças evangélicas para a área de cultura, direitos humanos, educação… Para aumentar sua influência, o núcleo duro do governo teria que se moderar e negociar. Esse sempre foi o desejo da ala militar que o integra. Mas é pedir demais para quem nunca quis saber de pluralismo político.
BBC News Brasil — Vem daí o que o senhor tratou como uma 'decepção' do Planalto com o STF?
Lynch — Sim. É por causa dessas decepções que aparecem, nos meios ligados ao 'bolsolavismo', o núcleo duro do governo influenciado por Olavo de Carvalho, os apelos a um golpe de Estado, a um novo AI-5, ao fechamento do Congresso e do Supremo.
O núcleo ideológico do governo, que é o mais radicalmente de direita, acha que recebeu um mandato do povo brasileiro para cumprir essa agenda reacionária. E, quando se frustra com a falta de colaboração dos outros poderes, prefere apelar ao golpismo do que aceitar a realidade de que, se pretende ter mais influência política, terá de se moderar e negociar. Daí as críticas que a ala militar do governo faz a esse 'bolsolavismo'.
Por que os militares são conservadores de outro tipo, eles incluem o progresso entre suas expectativas. Já os reacionários só pensam em voltar no tempo. O curioso é que, para dar um golpe, os 'bolsolavistas' precisam do apoio dos militares, e quem manda nas Forças Armadas acha que isso seria maluquice. Então eles ficam batendo cabeça, porque não querem negociar, mas também não conseguem dar vazão a esse autoritarismo que desejam.
BBC News Brasil — Após esse aceno do Supremo para reequilibrar as forças, como o senhor disse, qual será a postura do Congresso?
Lynch — O Legislativo tem diversas tendências. Quem hoje dá as cartas é o centrão, que vai continuar filtrando as políticas do Executivo conforme seus interesses. Foi assim com a Previdência, e farão o mesmo na reforma administrativa. Porque não tem mais presidencialismo de coalizão, aquele modelo em que o Executivo conseguia passar sua agenda.
Acredito que o Congresso vai continuar filtrando as pautas, condenando as veleidades autoritárias do governo e permanecendo em uma posição de expectativa sobre como ele vai se comportar. Porque, se o governo não funcionar e não se moderar, podem retornar ideias, não digo de um impeachment, mas de reformar a Constituição para implantar um sistema parlamentarista ou semipresidencial.
A verdade é que o governo não sabe o que fazer com os polos alternativos de poder, cujo controle lhe escapa. Todos os recursos de que ele lança mão para influenciar sem negociar simplesmente não funcionam.
BBC News Brasil — Na sua avaliação, o que a libertação do ex-presidente Lula representa para o STF?
Lynch — Acho que o retorno do Lula ao jogo vinha sendo desejado pela maior parte dos congressistas e ministros do Supremo como condição para o restabelecimento da normalidade política suspensa desde os protestos de 2013 e as eleições de 2014.
Ele sinaliza o desejo de dar um basta à instabilidade: impeachment, liminar de ministro do Supremo impedindo posse de ministro de Estado, polícia federal prendendo senadores… Chegou a hora de retomar a rotina, e a volta do Lula faz parte disso.
Uma questão é que o núcleo duro do governo, radical, acha que foi eleito para levar adiante a sua 'revolução conservadora' ou reacionária, e deseja tudo, menos um ambiente de normalidade institucional. Eles nasceram da instabilidade, tiveram sua janela de oportunidade aberta pela crise de legitimidade das instituições. Por isso, não acham que podem sobreviver na normalidade democrática.
Acreditam que voltar à rotina será uma espécie de 'contrarrevolução'. Eles não entendem que o país está farto e que a maioria de seus eleitores queria apenas um conservadorismo que corrigisse os excessos ou desvios dos anos anteriores e, ao mesmo, tempo devolvesse a paz ao país. Em outras palavras, o que a maior parte do eleitorado de Bolsonaro desejava era só um governo conservador, e não essa ideia de refundação reacionária do Estado brasileiro.
O problema, lembrando uma frase do (historiador e jurista) Joaquim Nabuco, é que, sem os radicais, não há revolução. Mas, com eles, depois, não é possível governar. É o dilema com que o governo se debate desde o início.
BBC News Brasil — Mas, nesse contexto, o que é 'voltar à rotina'?
Lynch — É reequilibrar o sistema político, e são necessárias duas providências para isso. Primeiro, reequilibrar a relação entre os poderes políticos. Então, o Judiciário tem que devolver a autonomia do Legislativo e os dois precisam coibir as veleidades autoritárias do Executivo.
Segundo, é preciso restabelecer o equilíbrio ideológico e partidário, o que seria impossível sem a volta do Lula à cena política. Acho que foi esse o raciocínio que as lideranças moderadas do Congresso e do Judiciário fizeram nos últimos tempos, depois de tanto atropelo.
BBC News Brasil — Qual será a prioridade de Lula?
Lynch — Lula está acima de tudo preocupado em limpar o nome do seu partido, que saiu enlameado dos acontecimentos dos últimos anos. Vai fazer o que sempre fez quando esteve na oposição: garantir sua hegemonia como líder da esquerda, correr o país para manter sua popularidade com líderes de esquerda, fazer cara feia para as 'elites' nos palanques públicos, e depois barganhar com elas no âmbito privado.
Ao mesmo tempo, vai denunciar a política econômica como prejudicial aos trabalhadores e explorar o desgaste natural do governo. Mas, desta vez, há um elemento de imprevisibilidade bem maior. Não se sabe se ele vai recuperar os direitos políticos, ou qual será o resultado dos julgamentos em que ele é réu.